sábado, setembro 18, 2004

é possível excluir o olhar no ato de ensinar? - Antonio Brito

A revolução provocada pela internet, recoloca uma questão, elaborada por Sócrates, que está sem resposta há mais de 2000 anos: Será possível o ensino sem a presença de um professor ? Se antes o livro era objeto de desconfiança, hoje são os dados digitais que apontam para novos desafios.

É uma questão que pertece ao rol daquelas que aparecem ao longo do tempo de modo diverso e não encontram uma resposta. Pensadores como Santo Tomás, Gomperz, Borges e mais recentemente em George Steiner ( Lessons of the Masters) retomarm esta questão. Recentemente Luis Fernado Veríssimo lembra, com seu modo engraçado de dizer,que os mestres nada escreveram e o medo do autor em que a escrita pereça nos novos meios digitais. Borges segue o filósofo aelmão Theodor Gomperz (1832-11912) para justificar a ausência dos escritos pitagóricos, em (Gomperz - "Os pensadores gregos" ).

Por que incluir Pitágoras no mesmo rol dos mestres orais - Buda, Cristo e Sócrates.?

A resposta está numa questão proposta por Santo Tomás :



Na 42 ª Questão da 3ª parte de sua Summa Teológica, São Tomás de Aquino, responde à questão: Por que Jesus Cristo não deixou seus ensinamentos escritos. "Utrum Christus debuerit doctrinam suamscripto tradere?" .



A resposta é, à la São Tomás, bastante simples:



"Sendo o Cristo um professor perfeito , à exemplo de outros pagãos como Pitágoras e Sócrates, ele preferiu falar diretamente ao coração dos homens, pois este é o melhor método de ensino"





É irônico observar que São Tomás, um professor e Doutor da Igreja, não limitou-se a ensinar pelo "método mais perfeito". Escreveu a grande Summa Teológica. Diferente de Sócrates, cujo ensinamento é através do diálogo com os discípulos, São Tomás procura convencer o leitor pela forças dos argumentos impressos da lógica teológica.

Os mais sábios então não precisariam escrever? Teríamos atribuído a Pitágoras ou aos pitagóricos sua gometria caso Euclides não tivesse escrito os Elementos? Platão não imortalizou a morte de Sócrates escrevendo o Fedon (uma das páginas mais emocionantes da filosofia e da imortalidade). O que seria do cristianismo sem os Evangelistas ? O que saberíamos a respeito deles hoje.? Tanto quanto sabemos das inúmeras seitas cujo conhecimento baseava-se na tradição oral, ou seja, nada exceto que existiram.



Por que então os mestres pivotais não escreveram?

Existe duas respostas plausíveis. Os Mestres não escreviam por que não podiam (talvez não dominassem a escrita da época) ou por que não queriam? No caso de Pitágoras, ambas as respostas são aceitáveis. Na sua epoca (~500 A.C.) a maior parte da cultura grega era transmitida na forma oral, em um poema métrico para facilitar a memorização. Sòmente em ~350 A.C., a lingua grega escrita passou a ser uma ferramenta para conservar a memória (e aí Borges nos diz que o livro é uma extensão da memória ). Por outro lado o pitagorismo era uma seita, cujos conhecimentos só eram acessíveis aos iniciados e transmitidos oralmente. Os membros da seita eram condenados caso desvelassem os conhecimentos de Pitágoras aos demais. Não podemos imaginar que algo que deva permanecer oculto possa ser escrito, daí mesmo que Pitágoras dominasse a escrita não a desejaria. A escrita, e o banco de dados, é a morte do segredo.

A questão em Sócrates é mais bem definida. Ele acreditava que a filosofia só podia ser ensinada através do diálogo. O aluno teria que chegar ao conhecimento através de um conjunto de perguntas contraditórias até atingir a compreensão, assim nos mostra Platão. São Tomás extrai do Diálogo platônico de Fedro (275a) esta posição socrática, que talvez não fosse a mesma de Platão.

Platão descreve, em Fedro, que um Deus oferece ao rei egípcio os saberes da escrita e este a recusa. Para o rei, e Sócrates, a escrita não ajuda à memória, ao contrário. A escrita é como uma figura, uma esfíngie, símbolos indecifráveis. O autor não mais está está presente para defender a letra imutável. Pode ser que o autor esteja querendo nos enganar, ele não poderá ser contestado.

Para os gregos, inclusive Platão, a escrita egípcia era uma série de imagens indecifráveis.Somente um seleto grupo de sarcedotes eram capazes de escrever e ler os hieróglifos. A interpretação da escrita hieroglifica egípcia só foi resolvida em 1800. Um general de Napoleão, em sua expedição pelo Egito, encontrou na margem esquerda do rio Nilo uma pedra com inscrições. Era uma monumento à posse do rei Ptolomeu V em 196 A.C. , escrito em duas línguas e três escritas: hieróglifos, demótico (linguagem cursiva dos hieróglifos) e grego. A decifração dos hieróglifos foi feita pelo inglês Thomas Young e o francês Jean-François Champollion. Este último foi o primeiro a reconhecer que os símbolos poderiam significar tanto as letras como um ideograma. Este simples achado, escrito em uma pedra à beira do caminho, permitiu à nossa civilização recuperar a memória escrita nos hieróglifos egípcios.

Discordava Platão do uso da escrita no ensino da filosofia ?.É difícil acreditar que um escritor abundante e encantador como Platão não reconhecesse a importância do trabalho escrito, ao menos para as futuras gerações. O que seria dos pitagóricos sem Euclides que consolidou a geometria ao escrever Os Elementos.? O que saberíamos de Sócrates caso não houvesse os Diálogos de Platão? Tanto o quanto sabemos dos sofistas que limiavam-se à palavra oral. Quanto a Cristo, pouco podemos afirmar se ele dominava grego ou o Latim escrito, a duas línguas mais bem estruturadas da época, porém o que seria dos seus ensinamentos sem os evangelistas?

Num dos ensaios Steiner lembra-nos que de todas as obras humanas, só o livro não perece. Flaubert, recordou ele, moribundo, às portas da morte, enfureceu-se com o fato da sua personagem Emma Bovary sobreviver-lhe. Mulher provinciana, adúltera, quase uma "rameira", sem qualidades dignas de mérito, ela permaneceria para sempre, imortalizada por ele, enquanto o autor estava ali agonizando, deixando escapar a vida. E, como ele, bem antes dele, muitos se consolaram, como Píndaro, que suas palavras ficariam gravadas no tempo, que os grandes homens e as cidades da sua época desapareceriam mas que aquilo que eles escreveram ou disseram nunca mais seria apagado dos registros humanos. O paradoxo disso é que aquilo que nos parece sólido no presente, o concreto, a pedra, o aço, se dissolverá algum dia, enquanto aquilo que nos assoma como o mais frágil: a palavra, o papel impresso, o livro enfim, perdurarão pelos tempos afora. O que é imortal é o produto da inteligência e do espírito humano.

Um comentário:

Madame Bovary disse...

Dei uma passada no seu blog e achei muito interessante......com certeza farei outras visitas....