domingo, setembro 05, 2004

o paraíso - a biblioteca - livros virtuais.

Domingo, 5 de setembro de 2004
O Paraíso e as bibliotecas Em discurso proferido no Congresso Mundial sobre Bibliotecas e Informação, realizado em Buenos Aires, o escritor argentino Tomás Eloy Martínez fala da relação dos homens com o livro e o impacto das novas tecnologias no ato de ler
TOMÁS ELOY MARTÍNEZ La Nación
Em um canto perdido do Museu Britânico, em Londres, há uma minúscula tábua de argila na qual estão gravados alguns versos sobre o dilúvio. Esses versos, que pertencem ao poema babilônico Gilgamesh, foram escritos em caracteres cuneiformes há mais de 4.300 anos. A tábua fazia parte da biblioteca do rei Arsubanipal, e é uma das primeiras de que se têm notícia. Os lampejos de imaginação do desconhecido autor de Gilgamesh iluminavam na época apenas alguns seres humanos: quem sabe 200 ou, talvez, mil. Naquele vasto amanhecer da espécie, a leitura era um conhecimento muito menos comum do que os da agricultura e da guerra. As histórias se perpetuavam por meio da voz dos arautos, que cantavam e improvisavam enquanto os demais ouviam e modificavam o que ouviam com as lembranças da memória. A não ser por alguns relatos sobre reis e guerreiros que buscavam a eternidade, aquelas primitivas tábuas de argila só serviam para o comércio e o registro de poucos feitos importantes: vitórias, conquistas, ritos imperiais.
Quem sabe quantos sistemas independentes de escritura eram então concebidos em outras latitudes. O número dos sobreviventes é cabalístico, sete, e todos eles se originaram a leste da Grécia, em Creta, na Mesopotâmia, nos Vales do Nilo e do Indo, entre os grandes rios da China, na meseta de Anatona, na antiga cidade persa de Susa. A espécie humana demorou mais dois milênios para reunir as palavras e estabelecer com elas essa melodia que agora conhecemos na forma do livro. Os primeiros livros não narravam histórias.
Eram fórmulas de adivinhação, interpretações do vôo dos pássaros, do movimento das ervas, do passeio dos animais. Por meio da natureza, o ser humano tentava decifrar o seu destino. E os livros eram parecidos com a fixação do destino, a eternidade imobilizada em palavras.
Talvez a maior maravilha do livro seja sua capacidade de transfiguração, de ser primeiro a voz que vai se enriquecendo ao passar de geração para geração, até que alguém, com medo que a voz se perca nos ventos do tempo, ordena retê-la em páginas manuscritas, como aconteceu com a Ilíada e As Mil e Uma Noites, para que seja mais tarde, folha impressa, biblioteca de Babel, símbolo virtual que desliza nos computadores. Na forma original do livro está, justamente, a escritura, em cuja definição coincidiram Aristóteles, os sábios chineses do século 15, assim como Voltaire e os enciclopedistas. No seu Lógica, Aristóteles disse que "as palavras faladas são símbolos da experiência mental e as palavras escritas são símbolos das palavras faladas". Segundo Tai T'ung, os chineses definiam a escrita como "a fala pintada" e a fala como "o hálito das vozes". Voltaire disse algo parecido:
"A escritura é a pintura da voz, quanto mais se parece com ela, melhor."
Em seu extenso amanhecer iletrado, a humanidade compunha livros sem saber, vozes, sucessões de histórias que se espalhavam no espaço público: as praças, os templos, as academias. Não existia a idéia de autor como a conhecemos hoje: escrever, ou criar, era uma tarefa coletiva, uma discussão, um diálogo como os que Platão transcreveu. A Ilíada e a Odisséia foram trabalho de muitos homens ou, talvez, de todos os Homeros que trabalharam nessas obras entre os séculos 8 e 6 antes da era atual. Cada copista da Ilíada adicionava uma linha ou subtraía uma cena, até que esse espaço móvel encontrou seu ponto de fixação; e o mesmo aconteceu com os evangelhos canônicos e com os apócrifos, com os textos de Confúcio queimados pelo primeiro imperador da China e refeitos pela memória de seus discípulos, e até com um romance célebre, o caudaloso e medieval Shui-hu-zhuan, ou À Beira d'Água, cujas centenas de episódios poderiam ser mil, cem mil ou apenas um.
A força do livro está no seu poder protéico, em ser voz, volume ou signo virtual, ou tudo de uma vez, para brotar de uma só pessoa ou encarnar, por si só, toda uma cultura.
Na Antiguidade, aqueles que ouviam as palavras de um livro, ou as copiavam, ou as liam conferindo forma oral ao escrito (porque a leitura em silêncio é, como se sabe, uma cerimônia tardia), estabeleciam uma interação entre o livro e sua comunidade. Ler era algo que pertencia à esfera pública e enriquecer o que se ia lendo com adições ou comentários, em vez de ser proibido, merecia gratidão coletiva. Mesmo que os doutores da Igreja tenham traçado depois uma linha divisória entre o conhecimento privado ou sagrado e o conhecimento público ou leigo, muitos poemas, novelas de cavalaria e relatos populares são fruto de gerações que iam depositando neles seus sedimentos culturais e as suas mudanças de linguagem, como aconteceu com Amadis de Gaula, a Chanson de Roland, o Poema de Cid e o épico anglo-saxão de Beowulf. Ao mesmo tempo, algumas grandes criações individuais começaram a impor a idéia de autor. Essa idéia aparece na Comédia de Dante, nos contos de Geoffrey Chaucer e em uma mulher que veio antes de todos, lady Shikibu Murasaki, que entre os anos de 1001 e 1003 recriou e embelezou a língua japonesa com Genji Monogatari, o primeiro e um dos mais esplendorosos romances de que se tem conhecimento.
A invenção da imprensa deu um salto decisivo na relação entre autor e leitor ao colocar o livro em uma esfera privada. Introduziu-o na intimidade do ser humano, converteu-o em acompanhante dos solitários, em confidente de ilusões e segredos, em transmissor de mensagens cifradas e permitiu que cada frase fosse lida de acordo com o ânimo que cada um tinha em um determinado momento da vida. O sentido dessa frase, por sua vez, podia ir se movendo na imaginação do mesmo indivíduo à medida que o tempo passava, tal como o definiu com precisão Jorge Luis Borges em seu conto Pierre Menard, autor de Quijote.
Pouco depois das primeiras Bíblias de Gutenberg, em 1474, Aldus Manutius empreendeu em Veneza a aventura de publicar algumas obras de que necessitava para seus cursos de humanidades. Imprimiu, primeiro, no formato manual, alguns clássicos gregos: Sófocles, Aristóteles, Platão, Tucídides; seguiu em latim com Virgílio, Horácio e Ovídio; e completou a coleção com dicionários e tratados de gramática. Essas edições, as mais esplêndidas da história da imprensa, nasceram com um propósito ainda mais extraordinário. Manutius as editou sem anotações nem comentários, para que os leitores entrassem nos textos de maneira direta, livres de toda mediação e pudessem dialogar a seu modo "com os mortos gloriosos".
O livro como diálogo com os mortos é uma idéia que vai repercutir cinco séculos mais tarde, quando Michel de Certeau define a história como a entrada em cena de uma população de defuntos e quando Jean-Paul Sartre assinala que toda obra só ganha sentido no momento em que é percebida por outro, apropriada por outro. A intimidade do leitor com o livro engendrou milhares de Don Quixotes, milhares de jovens Werthers, todos igualmente desesperados, mas todos com um desespero diferente; legiões de Madame Bovary, de David Copperfield, de Leopold Bloom, de Humbert Humbert e Lolitas. A intimidade criada pela palavra impressa abarca todos os espectros do conhecimento humano: o cinema, a história, a ciência, a filosofia, aquilo que antes é imaginação e depois signo. Cedo ou tarde, todo signo encontra sua mais nobre forma de disseminação na biblioteca, na forma de manuscrito, de fotografia, de gravuras de época, de ensaio para especialistas, de jornal, revista, livro e de informação virtual.
O reino do virtual nos devolveu, de certo modo, à forma comunitária de ler, de nos comunicar e de interagir por meio dos signos. Assim, a espécie humana foi derivando da ágora original, da criação por camadas superpostas de linguagem, a intimidade entre o autor e o texto, e a partir daí se dedicou a uma forma diferente de ágora, na qual o leitor, só diante de seu teclado, entretece sua experiência com os infinitos textos que se cruzam na rede. Os livros ou informações que circulam nesse espaço virtual podem ser encontrados e tomados por quem quiser - e de chofre, assim acontece com freqüência -, modificados por comentários ou reescrituras que vão nascendo enquanto se lê. Pouco a pouco, esta nova forma de ágora, este purgatório ou paraíso do virtual, começou a crescer como uma árvore indomável. A biblioteca de Babel, na qual Borges incluía todos os livros passados e os não escritos, e as variações de cada um desses livros, chegou antes do que se pensava. Já está entre nós.
O filósofo Paul Virilio escreveu que se o elemento central da modernidade era a velocidade da matéria - Fernand Braudel falava da "lentidão dos transportes" na sua história da civilização européia dos séculos 15 a 18 -, o dado central da pós-modernidade é a velocidade da luz. Virilio escreve: "O ser humano se vê superado por uma tecnologia que, no entanto, foi criada pela sua imaginação e pelas suas mãos, capaz de executar ações que vão muito além do que entendemos por passado e futuro." Na rede, na internet, cuja dispersão é global, não há na verdade dia nem noite, nem mesmo horas. Leio hoje o que aconteceu ontem na ilha de Páscoa e o que aconteceu amanhã em Tóquio. O meu tempo é duplo, ou múltiplo. Somos, agora, seres imersos em um oceano de tempo que se move em uma velocidade maior que a nossa imaginação.
Seria loucura pensar, como já previram alguns falsos poetas, que a informação virtual acabará com o livro tal como o conhecemos: ou seja, com o objeto retangular feito de papelão ou cartão ou couro, dentro do qual há folhas de papel cobertas de signos. Talvez o livro se transforme em outros livros, já vimos isso acontecer. Talvez as páginas de uma biblioteca inteira possam se mover com um ligeiro roçar do dedo indicador, como me aconteceu quando contemplei, em um museu da Sexta Avenida de Nova York, as fotos de crianças e adolescentes tiradas pelo diácono de Oxford, que conhecemos pelo nome de Lewis Carroll. Mas o livro vai perdurar na forma que assumiu há mais de 550 anos, porque sempre haverá alguém que prefira, ou melhor, escolha alcançar dessa maneira a intimidade com um autor, por meio das páginas que vão cobrando vida enquanto se abrem. Sempre haverá alguém que vai querer voltar para um livro só na edição em que o conheceu pela primeira vez, às dedicatórias, recordações e passados que ficaram unidos a esse objeto.
A palavra escrita perdurou e prevaleceu sobre os incêndios que tramaram sua destruição, desde que o imperador Shih huang-ti, construtor da Grande Muralha, ordenou que se queimassem todos os livros anteriores a ele, com exceção de alguns tratados de agricultura, só para provar - em vão - que a história do mundo começava com seu reinado. O mesmo fanatismo se ensaiou com a biblioteca que os Ptolomeus haviam criado na Alexandria três séculos antes da era cristã, e que sucumbiu ao fogo durante uma das guerras civis que se sucederam sob o imperador Aureliano, até o ano 273. Milhares de livros foram também jogados na fogueira pelos nazistas, em 1933, e de modo mais sigiloso, ainda que não menos vil, vários milhares foram queimados aqui, na praça de um regimento de Córdoba, no início de 1977.
A intolerância cobrou uma das suas mais lamentáveis vítimas em Bagdá, no dia 14 de abril de 2003, um mês depois da invasão do Iraque e o mesmo dia em que se viu a queda de Saddam Hussein. O saque devorou a cidade com um ímpeto cego e a Biblioteca Nacional também caiu nessa tarde. Pelo menos, 800 mil volumes foram, então, queimados e roubados, como se fossem os culpados das desgraças do Ocidente. A coleção de Omar Khayyam foi totalmente destruída, balas de morteiro explodiram com as caixas de microfilmagem e as caixas de documentos do extinto império otomano. Roubaram ou destruíram também as tábuas cuneiformes dos sumérios e quase todas as escrituras babilônicas do poema Gilgamesh. O diretor da biblioteca conseguiu salvar alguns fragmentos de argila, dos quais tirou estes versos: "O Bosque se estende por dez mil léguas/ Quem se atreveria a entrar nele?/ Porque o rugido de Huwawa é da tempestade/ porque suas presas vomitam fogo e seu hálito é mortal." Essas parcas linhas correspondem à terceira tábua, muito menos afortunada do que a 11.ª, a que fala do dilúvio, no Museu Britânico.
Mas nem o ódio dos bárbaros, nem a intolerância dos injustos conseguiu destruir o livro, cuja memória é também a memória da espécie humana.
Em qualquer uma de suas formas - seja nas tábuas cuneiformes de Gilgamesh, nos livros de orações copiados à mão pelos monges de monastérios medievais ou na primeira Bíblia de Gutenberg, nos folhetins de Dickens, nos três CD-ROMs que compreendem os 30 volumes da Enciclopédia Britânica ou nos arquivos que as pessoas trocam pela internet - o livro nem sempre foi só uma celebração do conhecimento, mas antes de tudo uma celebração da vida. E o que significa celebrar a vida nestes tempos de integração dos mercados, das finanças e da tecnologia? Significa celebrar os valores que definem o melhor do espírito humano: a linguagem, a imaginação, a liberdade, o afã da justiça, a busca da igualdade. Todos, hoje e aqui, continuamos imaginando o Paraíso como uma espécie de biblioteca.

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