terça-feira, março 14, 2006

Machado de Assis - Crônicas - corrupção e desperdício

UM RECENTE livro estrangeiro, relativo ao nosso Brasil, dá-me ensejo para dizer aos leitores que, se eu datei do Rio de Janeiro a minha última crônica, se faço o mesmo a esta e às futuras, é porque esse é o nome histórico, oficial, público e doméstico da boa cidade que me viu nascer, e me verá morrer, se Deus me der vida e saúde. O viajante estrangeiro, referindo-se ao erro que deu lugar ao nome desta cidade, admira-se de que haja sido conservado tão religiosamente, sendo tão simples emendá-lo. Que diria ele, se pudesse compreender a carência de eufonia de um nome tão áspero, tão surdo, tão comprido? Infelizmente,- e nesta parte engana-se o viajante,- o costume secular e a sanção do mundo consagraram de tal modo este nome, que seria bem árduo trocá-lo por outro, e bem audaz quem o propusesse seriamente.
Pela minha parte, folgaria muito se pudesse datar estas crônicas de Guanabara, por exemplo, nome simples, eufônico, e de algum modo histórico, espécie de vínculo entre os primeiros povoadores da região e seus atuais herdeiros. Guanabara tem, é certo, o pecado de cheirar a poesia, de ter sido estafado nos octossílabos que o Romantismo expectorou entre 1844 e l853; mas um banho de boa prosa limpava-o desse bolor, enrijava-lhe os músculos, punha-o capaz de resistir a cinco séculos de uso quotidiano. O ponto era acostumar-se a gente a lê-lo com solenidade, num título cientifico ou num edital de arrematação; porque o costume, leitor amigo, é metade da natureza. Só o uso do ouvido nos faz suportáveis ou indiferentes a baba-de-moça e o coco-de-catarro.

II
Ou Guanabara ou Rio de Janeiro, a cidade está ainda hoje debaixo de uma grande impressão de espanto, por motivo de um caso extraordinário, la chose la plus extraordinaire et la plus commune, la plus grande et la plus petite,- para usar a linguagem da mulher que mais se carteou, desde que há mulheres e cartas.
Com efeito, o anão da Libéria deu uma canivetada no contrato, deixando-se raptar, como qualquer sabina. Ou inclinação pessoal, ou capricho, ou simples rebelião das potências da alma, qualquer que fosse o motivo secreto da ação, o fato é que o homúnculo mostrou de modo afirmativo que um filho da Libéria deve amar, antes de tudo, a liberdade. Questão de cor local. Entendeu o anão, Sir Nathan Burraw, que o fato de não ter braços não lhe tira a qualidade de homem, a qual reside simplesmente nas barbas, que o dito anão espera vir a ter em tempo idôneo, e sabe lá, se barbas azuis, como as do marido de sete mulheres. Por enquanto, não muda de mulheres, mas de contratantes, e, preço por preço, inclina-se aos minas, que são seus malungos. Podemos dizer que é alma de Bruto no corpo de Calibã.
Agora, como se operou o rapto, é o que até hoje ninguém sabe. Dizem uns que ele foi arrebatado como uma simples ilha de Chipre, mediante um tratado secreto; e há quem queira ver no ato dos pretos minas uma imitação do velho Disraeli. É exageração; o mais que eu poderia admitir seria um pequeno reflexo. Outros dizem que não houve tratado, mas escada de seda, como num rapto de ópera-cômica.Qualquer que fosse o modo, a verdade é que com o empresário do anão, deu-se o inverso do que usualmente acontece. Há homens que deixam o ofício; aqui foi o ofício que deixou o homem. Vejam que triste exemplo deu a Pati! Todas as galinhas dos ovos de ouro querem agora pôr os ovos para si. No fundo deste incidente há uma questão social.

III
Mal convalescia o espírito público do abalo que lhe causou a notícia do rapto, surdiu o caso das coletorias de Minas, apostadas em roer algumas aparas do orçamento, caso triste, por qualquer lado que o encaremos, e sobre o qual pertence a palavra à autoridade pública.
Concorrentemente, quatro coletores da província do Rio de Janeiro deixaram as casas por motivo de lacuna nos cofres. Enfim, um empregado de uma casa desta corte, indo levar ao Tesouro certa quantia - 20 contos - desapareceu com eles.
Quanto a esta notícia, é incompleta. O negociante, estando ontem a almoçar, recebeu vinte cartões de visita, eram os 20 contos que voltavam por seu pé. Um dos contos referia-lhe então que o caixeiro, ao chegar à rua, os convidara a entrar no tesouro, ao que se opuseram 5 contos, e logo depois os restantes. Não querendo acompanhar o empregado, apesar dos mais incríveis esforços, este os deixou sozinhos, no meio de uma rua, que supõem ser a Ladeira do Escorrega, sítio nefasto aos contos. Então um deles propôs que voltassem para casa; teve a proposta 15 contos a favor e 5 contra, os mesmos 5, que primeiro se tinham oposto à entrada no Tesouro, os quais declararam que eram livres, em face dos princípios da revolução de 89.
O comerciante ouviu comovido esta narração dos acontecimentos, apertou as mãos de todos os contos e protestou sua adesão aos princípios de 89; acrescentando que, se haviam procedido mal, recusando entrar no Tesouro, tinham expiado a culpa, regressando voluntariamente ao casal paterno, donde aliás deviam seguir amanhã para o primeiro destino.
- Nunca! bradou um dos contos.
E sacando uma pistola, suicidou-se. Foi sepultado ontem mesmo. Um regimento de quatrocentos mil-réis a cavalo prestou as últimas honras ao infeliz suicida.

IV "A Carta do Tesouro "

Saibam, agora, que a Câmara resolveu autorizar o tesoureiro a comprar uma arca forte para recolher nela as suas rendas. Cáspite! Esta notícia derruba todas as minhas idéias acerca das rendas do município. A primeira convicção política incutida em meu espírito foi que o município não tinha recursos, e que por esse motivo andava descalçado, ou devia o calçado; convicção que me acompanhou até hoje. A frase - escassez das rendas municipais - há muito tempo que nenhum tipógrafo a compõe; está já estereotipada e pronta, para entrar no período competente, quando alguém articula as suas idéas acerca dos negócios locais. Imaginei sempre que todas as rendas da Câmara podiam caber na minha carteira, que é uma carteirinha de moça. Vai senão quando, a Câmara ordena que se lhe compre uma arca, e recomenda que seja forte, deita fora as suas muletas de mendiga, erige o corpo, como um Sisto V, e, como um primo Basílio tilinta as chaves da burra nas algibeiras. Diógenes batiza-se Creso; a cigarra virou formiga.
E notem que a riqueza da Câmara tende a crescer, à vista da proposta de um comerciante, que oferece ministrar todo o papel, apenas, tintas e mais artigos necessários às eleições (excluídas as cabeçadas), 30% menos do preço por que tais artigos têm sido fornecidos até hoje. Até hoje, quer dizer desde que há eleições, - o que não sei se abrange também os pelouros do antigo regímen. Se a Câmara lhe aceita a proposta, esse homem acaba estendendo a mão à caridade pública. Trinta por cento menos, é impossível que lhe não dê um prejuízo certo de outros quinze; salvo se os antecessores ganhavam demais.

V
Parece que se trata de organizar uma sociedade tauromáquica. Nada direi a tal respeito; os leitores conhecem as minhas idéias acerca da tauromarquia; idéias, digo mal; conhecem os meus sentimentos. Acho que é um dos mais belos espetáculos que se podem oferecer à contemplação do homem; e que uma sociedade já enfarada de tantas obras de arte, de um teatro superior, quase único, de tantas obras-primas do engenho humano, uma sociedade assim, precisa de um forte abalo muscular, precisa de repousar os olhos num espetáculo higiênico, deleitoso e instrutivo. Nem vejo motivo para que adotado o cavalo no Prado Fluminense, não se adote o boi em qualquer outro sítio. O boi não é tão épico nem tão elegante como o cavalo, mas tem outras qualidades próprias. Nem se trata do merecimento intrínseco dos dois quadrúpedes; trata-se da graça relativa dos dois divertimentos; e, a tal respeito, força é dizer que de um lado, o cavalo pleiteia com o cavalo, ao passo que de outro, o boi luta com o homem, - a força com a destreza, a inteligência com o instinto. Juntem a estes méritos a vantagem de enriquecer o vocabulário com uma chusma de expressões pitorescas, tais como a pega de cara, a pega de cernelha e outras, incluídas no novo método, e ver-se-á que a luta dos touros não é somenos à corrida de cavalos.
Para quem nada queria dizer, aí fica um período assaz longo e não menos entusiástico. Caiu da pena, e já agora não o risco, porque tenho pressa de chegar ao meu propósito, que é fazer uma barretada aos jesuítas. Já daqui estou a ver franzidas as sobrancelhas liberais do leitor, não mais liberais do que as minhas, que o são, e de bom cabelo; mas enfim, pode-se ser liberal e justo. Uma coisa implica a outra.
Que os espanhóis são doidos por touros ninguém há que o ignore, e ainda há pouco tivemos notícia da magnífica tourada de Madri, por ocasião do consórcio da malograda esposa do rei. O touro nivela todas as classes da Espanha; nos dias de tourada, só há uma entidade superior a todos os espanhóis, é o capinha ou como melhor nome haja, sujeito que, em chegando à celebridade, fica sendo o beijinho de todas as duquesas de Castela, ombreia com todos os Olivares e Osunas, e em certos dias reúne em si todas as forças vivas da razão. Nem lhe serão adversos os cônegos e monsenhores; os quais, não sei se ainda hoje, mas no século XVII, eram grandemente assíduos naquelas tremendas festas, não obstante uma bula papal de excomunhão.
Neste ponto é que eu tiro o meu barrete aos jesuítas. Um velho escritor inglês, Lord Charendon, que historiou a revolução de Cromwell, conta que as arquibancadas do clero e da Inquisiçao estavam sempre cheias de espectadores, sem contar os frades, que lá iam com seus hábitos. Só não iam os jesuítas, - os quais (conta o lord) marcavam sempre para aqueles dias algum solene exercício, que os obrigava a estar incorporados, - that obriges their whole body to be together. Não se pode pintar mais vivamente a sedução das touradas e a habilidade da Ordem. Esta sabia qual era a influência do meio social e a atração do exemplo, e vencia-as a seu modo, sem imposição. Digam-me se não é caso de lhe tirar o meu barrete.
Tirá-lo e copiá-lo. Nos dias de tourada, se o meu olho piscar de curiosidade, se o meu pé palpitar de impaciência, reúno-os a todos eles, olhos, pés e braços, em um exercício qualquer, quando mais não seja, em examinar as causas de um singular fenômeno: o das desarmonias da Sociedade Filarmônica, que, depois de dar o seu concerto no Conservatório, vem dar na imprensa um charivari.
VI
O sonambulismo tem sido aplicado à cura de moléstias, e ultimamente à busca das coisas perdidas e à predição do futuro, o que aliás a nossa polícia contestou de um modo formal e urbano. Faltava aplicá-lo à política dos Estados; é o que acaba de fazer o governo argentino. O governo argentino mandou, por descuido, o orçamento ao Senado, devendo mandá-lo à Câmara; o Senado, não menos sonâmbulo que o governo, pôs o orçamento em discussão. A Câmara estranhou esses dois cochilos; mas não podendo ser excluída da virtude sonambúlica, é muito provável que adormeça também, e vote a lei, com os olhos fechados. Resta que os contribuintes, ainda mais sonâmbulos do que os dois poderes, paguem a si mesmos os impostos; o que permitirá ao governo remeter então o orçamento ao congresso literário; e, caso este recuse, à biblioteca de Alexandria.
Generalizado o sistema, ninguém pode prever onde chegarão as nações mais policiadas do globo. Veremos os embaixadores fumarem as credenciais e apresentarem um charuto aos governos, darem satisfação a si mesmos dos insultos que houverem praticado, comerem com a mão e darem o garfo a apertar aos seus convivas. Nas Câmaras, os deputados deixarão o recinto quando se discutirem os projetos, e entrarão unicamente para votá-los: coisa que só se pode explicar no estado de sonambulismo. Tais e quejandas serão as conseqüências do sistema, se ele passar de Buenos Aires ao resto do mundo: o que Deus não permita, ao menos nestes séculos mais próximos.
VII
Não é de pequena gravidade a notícia, chegada esta semana, de que na ilha de Itaparica duas parcialidades se acham em armas e em guerra, tendo já havido mortos feridos. Disse-se a princípio que a causa do litígio era a posse das influências locais, como se influir em Itaparica fosse coisa tão superfina, que levasse um homem a perder as orelhas, as costelas, e, quando menos, a vida. Ainda se o vencedor pudesse ficar dono único da ilha, como Robinson, compreendo a fúria dos habitantes, não porque fosse mais nobre possuir algumas jeiras de terras sem gente, mas porque seria menos árduo. Antes Robinson que Sancho, que ao cabo de dez dias de governador, voltou desencantado a pôr a albarda no seu ruço. Nada; não há de ser isso; o motivo deve corresponder ao perigo e ao esforço; deve ser talvez o trono de Marrocos, vago esta semana, ou coisa assim.
E daí pode ser que o motivo do litígio seja este recente problema: - Quem quebrou o braço da menina Luzia? - o qual parece destinado a quebrar por sua vez todas as cabeças pensantes. O congresso de Berlim destrinçou mais depressa a questão turca, do que nós veremos resolver este caso, essencialmente nebuloso; salvo se aceitarem a minha solução, que combina todas as versões opostas: foi o tamanco e só o tamanco que quebrou o braço. Porquanto, só um tamanco podia ter a crueldade de bater numa criança, ao sair de um hospital. Nem seria acertado esperar caridade dos tamancos: não é esse o seu forte; outros dirão que não é o seu fraco.

quinta-feira, março 09, 2006

Machado de Assis - Cronicas - A literatura e a imortalidade

A Semana 1895 , [1 dezembro] [173 ]
palavras chave
{a imortalidade e a literatura - túmulo de Musset - Balzac e o fracasso de Quinola - Dumas Filho e o teatro - a política é a velhice precoce do autor - a moda passa e o texto importante reaparece : Dumas pai, Lmartine, Musset , Stendhal , Heine e Byron. }

IMAGINO o que se terá passado em Paris, quando Dumas Filho morreu. Uma das quarenta... Não cuideis que falo das cadeiras da Academia. Este mundo não se compõe só de cadeiras acadêmicas; também há nele interpelações parlamentares, e dizem que o recente ministério tem já de responder a cerca de quarenta, ou sessenta. Refiro-me justamente às interpelações. Uma delas verificou-se depois da morte de Dumas Filho. O interpelante oprimiu naturalmente o ministério, o ministério sacudiu o interpelante, tudo com o cerimonial de costume, apartes, gritos e protestos; vieram os votos: o ministério teve a grande maioria deles. Nada disso tirou à cidade esta idéia única: Dumas Filho morreu. Dumas Filho morreu. Homens, mulheres, fidalgas e burguesas falaram deste óbito como do de um príncipe qualquer. Não há já damas das camélias; ele mesmo disse que a mulher que lhe serviu de modelo ao personagem de Margarida Gautier foi uma das últimas que tiveram coração. Podia parecer paradoxo ou presunção de moço se ele não escrevesse isto em 1867, vinte anos depois da morte de Margarida. Demais, se as palavras dão idéia das cousas, a segunda metade deste século não chega a conhecer a primeira. Cortesãs, ou o que quer que elas eram em 1847, acabaram horizontais, nome que é, por Si, um programa inteiro, e é mais possível que já lhes hajam dado outro nome mais exato e mais cru. Não faltarão, porém, mulheres nem homens, tantas figuras vivas, criadas por ele, tiradas do mundo que passa, para a cena que perpetua. Todos esses, e todos os demais falaram desta morte como de um luto público.
A moda passará como passou a de Dumas pai, a de Lamartine, a de Musset, a de Stendhal, a de tantos outros, para tornar mais tarde e definitivamente. Ás vezes, o eclipse chega a ser esquecimento e ingratidão. Musset,—que Heine dizia ser o primeiro poeta lírico da França,—pedia aos amigos, em belos versos, que lhe plantassem um salgueiro ao pé da cova. Possuo umas lascas e folhas do salgueiro que está plantado na sepultura do autor das Noites, e que Artur Azevedo me trouxe em 1883; mas não foram amigos que o plantaram, não foram sequer franceses, foi um inglês.
Parece que, indo fazer a visita aos mortos, doeu-lhe não ver ali o arbusto pedido e cumprir-se o desejo do poeta. Donde se conclui que os ingleses nem sempre ficam com a ilha da Trindade. Há deles que dão para amar os poetas e seus suspiros. Também os há que, por amor das musas, fazem-se armar soldados. Um deles quando os gregos bradaram pela independência, pegou em si para ir ajudá-los e não chegou ao fim; morreu de doença em Missolonghi. Era par de Inglaterra; chamava-se, creio, eu Georges Gordon Noel Byron. Tinha escrito muitos poemas e versos soltos e feito alguns discursos.
A glória veio depois da moda, e pôs Dumas pai no lugar que lhe cabe neste século, como fez aos outros seus rivais. Cada gênio recebeu a sua palma. Se a moda fizer a Dumas filho o mesmo que aos outros, o tempo operará igual resgate, e os dous Dumas encherão juntos o mesmo século. Rara vez se dará uma sucessão destas, a glória engendrando a glória, o sangue transmitindo a imortalidade. Sabeis muito bem que, nem por ser filho, o Dumas, que ora faleceu, deixou de ser outra pessoa no teatro, grande e original. Entendeu o teatro de outra maneira, fez dele uma tribuna, mas o pintor era assaz consciente e forte para não deixar ao pé ou de envolta com a lição de moral ou filosofia uma cópia da sociedade e dos homens do seu tempo. Dizem também que o filho pôs a vida natural em cena, mas disso já se gabava o pai em 1833, e creio que ambos, cada qual no seu tempo, tinham razão.
Nem por ter saboreado a glória a largos sorvos, perdeu Dumas filho a adoração que tinha ao pai. Ao velho chegaram a chamar por troça "o pai Dumas". O filho, ao referi-lo, conta uma reminiscência dos sete anos. Era a noite da primeira representação de Carlos VII. Não entendeu nem podia entender nada do que via e ouvia. A peça caiu. O autor saiu do teatro, triste e calado, com o pequeno Alexandre pela mão, este amiudando os passinhos para poder acompanhar as grandes pernadas do pai. Mais tarde, sempre que saía da representação das próprias peças, coberto de aplausos, não podia esquecer, ao tornar para casa, aquela noite de 1831, e dizia consigo: "Pode ser, mas eu preferia ter escrito Carlos VII, que caiu." Conheceis todo o resto desse prefácio do Filho Natural, não esquecestes a famosa e célebre página em que o autor da Dama das Camélias faia ao autor de Antony: "Então começastes esse trabalho ciclópico que dura há quarenta anos..."
Também o dele durou quarenta anos. A mais de um espantou agora a notícia dos seus 71 de idade; e ainda anteontem, em casa de um amigo, dizia este com graça: "então lá se foi o velho Dumas." Todos tínhamos o sentimento de um Dumas moço, tão moço como a Darna das Camélias. A verdade é que um e outro guardaram o segredo da eterna juventude.
Lá se foi toda a crônica. Relevai-me de não tratar de outros assuntos; este prende ainda com o tempo da nossa adolescência, a minha e a de outros.
Naquela quadra cada peça nova de Dumas Filho ou de Augier, para só falar de dous mestres, vinha logo impressa no primeiro paquete, os rapazes corriam a lê-la, a traduzi-la, a levá-la ao teatro, onde os atores a estudavam e a representavam ante um público atento e entusiasta, que a ouvia dez, vinte, trinta vezes. E adverti que não era, como agora, teatros de verão, com jardim, mesas, cerveja e mulheres com um edifício de madeira ao fundo. Eram teatros fechados, alguns tinham as célebres e incômodas travessas, que aumentavam na platéia o número dos assentos. Noites de festas; os rapazes corriam a ver a Dama das Camélias e o Filho de Giboyer, como seus pais tinham corrido a ver o Kean e Lucrécia Bórgia. Bons rapazes, onde vão eles? Uns seguiram o caminho dos autores mortos, outros envelhecem, outros foram para a política, que é a velhice precoce, outros conservam-se como este que morreu tão moço.

quinta-feira, março 02, 2006

Machado de Assis - Cronicas - Bons Dias 1888 - I

Machado de Assis - Crônicas - Bons Dias (1888-89)

Bons Dias, de Machado de Assis (1888 - 1889)

[69] [5 abril]

BONS DIAS!

Hão de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, e ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para voltar na outra semana. Mas, não senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me disser a mesma coisa, em resposta, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo; ficando, todavia, entendido que há leitor e leitor, e que eu, explicando-me com tão nobre franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora com este papel na mão, mas ao seu vizinho. Ora bem!

Feito esse cumprimento, que não é do estilo, mas é honesto declaro que não apresento programa. Depois de um recente discurso proferido no Beethoven, acho perigoso que uma pessoa diga claramente o que é que vai fazer; o melhor é lazer calado. Nisto pareço-me com o principie (sempre é bom parecer-se a gente com príncipes, em alguma coisa, dá certa dignidade, e faz lembrar um sujeito muito alto e louro parecidíssimo com o imperador, que há cerca de trinta anos ia a todas as festas da Capela Imperial, pour étonner de bourgeois; os fiéis levavam a olhar para um e para outro, e a compará-los, admirados, e ele teso, grave, movendo a cabeça à maneira de Sua Majestade. São gostos de Bismark. O príncipe de Bismark tem feito tudo sem programa público; a única orelha que o ouviu, foi a do finado imperador, — e talvez só a direita, com ordem de o não repetir à esquerda. O parlamento e o país viram só o resto.

Deus fez programa, é verdade ("E Deus disse: Façamos o homem, à nossa imagem e semelhança, para que presida" etc. Gênesis, I, 26): mas é preciso ler esse programa com muita cautela. Rigorosamente, era um modo de persuadir ao homem a alta linhagem de seu nariz. Sem aquele texto, nunca o homem atribuiria ao Criador, nem a sua gaforinha, nem a sua fraude. É certo que a fraude, e, a rigor. a gaforinha são obras do diabo, segundo as melhores interpretações; mas não é menos certo que essa opinião é só dos homens bons; os maus crêem-se filhos do céu — tudo por causa do versículo da Escritura.

Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo; cá virei uma vez por semana com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor, não tenho papas na língua, e é para vir a tê-las que escrevo.Se as tivesse, engolia-as e estava acabado. Mas aqui está o

que é, eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem igualzinhos, sem discrepância: desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro.

Um exemplo. O Partido, Liberal, segundo li, estava encasacado e pronto para sair com o relógio na mão, porque a hora pingava. Faltava-lhe só o chapéu, que seria o chapéu Dantas, ou o chapéu Saraiva ( ambos da chapelaria Aristocrata): era só pô-lo na cabeça, e sair. Nisto passa o carro do paço com outra pessoa, e ele descobre que ou o seu relógio está adiantado, ou o de Sua Alteza é que se atrasara. Quem os porá de acordo'?

Foi por essas e outras que descri do oficio; e. na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos. Aqui me terão, portanto, com certeza até à chegada do Bendegó, mas provavelmente ate à escolha do Sr. Guaí, e talvez mais tarde. Não digo mais nada para os não aborrecer, e porque já me chamaram para o almoço.

Talvez o que ai fica, saia muito curtinho depois de impresso. Como eu não tenho hábito de periódicos, não posso calcular entre a letra de mão e a letra de forma. Se aqui estivesse o meu amigo Fulano (não ponho o nome, para que cada um tome para si esta lembrança delicada), diria logo que ele só pode calcular com letras de câmbio —trocadilho que fede como o diabo. Já falei três vezes no diabo em tão poucas linhas, e mais esta, quatro; é demais.

Boas noites.

[70] [4 maio]

BONS DIAS!

. . . Desculpem, se lhes não tiro o chapéu: estou muito constipado. Vejam; mal posso respirar. Passo as noutes de boca aberta. Creio até. que estou abatido e magro. Não? Estou: olhem como fungo. E não é de autoridade, note-se; ex autoritate qua fungor não, senhor; fungo sem a menor sombra de poder, fungo à toa. . .

Entretanto, se alguma vez precisei de estar de perfeita saúde, é agora, por várias razões. Citarei duas:

A primeira é a abertura das câmaras. Realmente, deve ser solene. O discurso da princesa, o anúncio da lei de abolição, as outras reformas, se as há, tudo excita curiosidade geral, e naturalmente pede uma saúde de ferro. O meu plano era simples; metia-me na casaca. E ia para o Senado arranjar um lugar, donde visse a cerimônia, deputações, recepção, discurso Infelizmente, não posso; o médico não quer, diz-me que, por esses tempos úmidos, é arriscado sair de casa; fico.

A segunda razão da saúde que eu desejava ter agora, prende com a primeira. Já o leitor adivinhou o que é. Não se pode conversar nada, assim mais encobertamente, que ele não perceba logo e não descubra. É isso mesmo; é a política do Ceará. Era outro plano meu; entrava pelo Senado, e ia ter com o senador cearense Castro Carreira. e dizia-lhe mais ou menos isto:

— Saberá V. Ex.a que eu não entendo patavina dos partidos do Ceará.

— Com efeito...

— Eles são dois, mas quatro; ou, mais acertadamente, são quatro mas dois.

— dois em quatro.

— Quatro em dois.

— dois quatro.

— Quatro, dois.

— Quatro.

— dois.

— dois.

— Quatro.

— Justamente.

— Não é?

— Claríssimo.

Dadas estas explicações, pediria que ao Sr. Dr. Castro Carreira que me desse algumas notícias mais individuais dos grupos Aquirás e Ibiapaba . S. Ex.a, com fastio.

— Notícias individuais? Homem eu não sei política individualista; eu só vejo os princípios.

— Bem, os princípios. Sabe que o grupo Aquirás, com um troço liberal, tomaram conta da mesa: mas o grupo Ibiapaba acudiu com outro troço liberal, e puseram água na fervura. Quais são os princípios?

- Os primeiros de todos devem ser os da boa educação, sem os quais não há boa política. Dai-me boa educação, e eu vos darei boa política, diria o Barão Louis. São os primeiros de todos os princípios.

— Os segundos...

— Os segundos são os comuns—ou que o devem ser a todos os partidários, quaisquer que sejam as denominações particulares, refiro-me ao bem da província. É o terreno em que todos se podem conciliar.

— De acordo; mas o que é que os separa?

— Os princípios.

— Que princípios?

— Não há outros; os princípios.

— Mas Aquirás é um título, não é um princípio; Ibiapaba também é um título.

— Há entre o céu e a terra mais acumulações do que sonha a vossa vã filosofia...

— Pode ser, mas isto ainda não me explica a razão desta mistura ou troca de grupos, parecendo melhor que se fundissem de uma vez com os antigos adversários. Não lhe parece?

— O que me parece, é que a princesa vem chegando.

Corríamos a janela; víramos que não, continuávamos o diálogo, a entrevia, à maneira americana, para trazer os meus leitores informados das coisas e pessoas. O meu interlocutor, vendo que não era a promessa, olhava para mim, esperando. Pouco ou nenhum interesse no olhar; mas é ditado velho, que quem vê cara não vê corações. Certo fastio crescente. Princípio de desconfiança de que eu sou mandado pelo diabo. Gesto vago de cruzes...— Há os Rodrigues, os Paulas, os Aquirases, os Ibiapas; há os...

— Agora creio que é a princesa. Estas trombetas. . . É ela mesma adeus, sou da deputação... Apareça aqui pelo Senado... No Senado, não há dúvidas...

Mas eu pegava-lhe na mão, e não vinha embora sem alguns esclarecimentos. Tudo perdido, por causa de uma. Coriza dos diabos, agora ou nunca, chegaríamos a entender aqueles grupos; e perde-se esta ocasião única, por tua causa, infame catarro, monco pérfido!... Tuah! Vou meter-me na cama.

Boas noites.

[71] [11 maio]

BONS DIAS!

Vejam os leitores a diferença que há entre um homem de olho aberto, profundo, sagaz, próprio para remexer o mais íntimo das consciências (eu em suma), e o resto da população.

Toda a gente contempla a procissão na rua, as bandas e bandeiras, o alvoroço , o tumulto, e aplaude ou censura, segundo é abolicionista ou outra coisa, mas ninguém dá a razão desta coisa ou daquela coisa; ninguém arrancou aos fatos uma significação, e, depois, uma opinião. Creio que fiz um verso.

Eu, pela minha parte não tinha parecer. Não era por indiferença: é que me custava a achar uma opinião. Alguém me disse que isto vinha de que certas pessoas tinham duas e três, e que naturalmente esta injusta acumulação trazia a miséria de muitos pelo que, era preciso fazer uma grande revolução econômica, etc. Compreendi que era um socialista que me falava, e mandei-o à fava. Foi outro verso , mas vi-me livre de um amolador. Quantas vezes me não acontece o contrário!

Não foi o ato das alforrias em massa dos últimos dias essas alforrias incondicionais, que vêm cair como estrelas no meio da discussão da lei da abolição. Não foi; porque esses atos são de pura vontade, sem a menor explicação. Lá que eu gosto liberdade, é certo; mas o princípio da propriedade não é menos legítimo. Qual deles escolheria? Vivia assim como uma peteca (salvo seja), entre as duas opiniões, até que a sagacidade e profundeza de espírito com que Deus quis compensar a minha humildade, me indicou a opinião racional e os seus fundamentos.

Não é novidade para ninguém que os escravos fugidos em Campos, eram alugados. Em Ouro Preto fez-se a mesma coisa, mas por um modo mais particular. Estavam ali muitos escravos fugidos. Escravos, isto é, indivíduos que, pela legislação em vigor eram obrigados a servir a uma pessoa; e fugidos, isto é, que se haviam subtraído ao poder do senhor, contra as disposições legais. Esses escravos fugidos não tinham ocupação; lá veio, porém, um dia em que acharam salário, e parece que bom salário.

Quem os contratou? Quem é que foi a Ouro Preto contratar comesses escravos fugidos aos fazendeiros A, B, C? Foram os fazendeiros D, E, F. Estes é que saíram a contratar com aqueles escravos de outros colegas, e os levaram consigo para as suas roças.

Não quis saber mais nada; desde que os interessados rompiam assim a solidariedade do direito comum, é que a questão passava a ser de simples luta pela vida, e eu, em todas as lutas, estou sempre do lado do vencedor. Não digo que este procedimento seja original, mas é lucrativo. Alguns não me compreenderam (porque há muito burro neste mundo ); alguém chegou a dizer-me que aqueles fazendeiros fizeram aquilo, não porque não vissem que trabalhavam contra a própria causa, mas para pegar uma peça ao Clapp. Imagina-se bem se arregalei os olhos.

— Sim, senhor. Saia que o Clapp tinha o plano feito de ir a Ouro Preto pegar os tais escravos e restituí-los aos senhores, dando-lhes ainda uma pequena indenização do seu bolsinho, e pagando ele mesmo a sua passagem da estrada de ferro. Foi por isso que...

— Mas então quem é que está aqui doido?

—É o senhor; o senhor é que perdeu o pouco juízo que tinha. Aposto que não vê que anda alguma coisa no ar.

— Vejo, creio que é um papagaio.

— Não, senhor; é uma república. Querem ver que também não acredita que esta mudança é indispensável?

— Homem, eu a respeito de governo, estou com Aristóteles, no capítulo dos chapéus. O melhor chapéu é o que vai bem à cabeça. Este, por ora, não vai mal.

— Vai pessimamente. Está saindo dos eixos; é preciso que isto seja, senão com a monarquia, ao menos com a república, aquilo que dizia o Rio-Post de 21 de junho do ano passado. Você sabe alemão?

— Não.

— Não sabe alemão?

E dizendo-lhe eu outra vez que não sabia, ele imitando o médico de Molière. dispara-me na cara esta algaravia do diabo:

— Es dürft leicht zu erweisen sein, dass Brasilien weniger eine kontitutionelle Monarchie als eine absolute Oligarchie ist.

—Mas que quer isto dizer?

— Que é deste último tronco que deve brotar a flor.



— Que flor? As

Boas noites.

[721] [ 19 maio]

BONS DIAS!

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prcvista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coupe do milieu, mas eu prefiro falar a minha língua) levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mcsmas idéias e imitaar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que e ainda meu sobrinho) pegou de outra taça e pediu à ilustre assembéia que correspondesse ao ato que acabava de publicar brindando ao primeiro dos cariocas Ouvi cabisbaixo: fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões Creio que cstão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...

— Oh! meu senhô! fico

— Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo: tu cresceste imensamcnte. Quando nasceste eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...

— Artura não qué dizê nada, não, senhô...

-— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis: mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não cscovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio: daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas. e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu em casa, na modéstia da familia, libertava um escravo ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendendo a ler, escrever e contar, (simples suposição) é éntão professor de filosofia no Rio das Cobras: que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: es livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

Boas noites

[73] [1 de junho]

BONS DIAS!

Agora fale o senhor, que eu não tenho nada mais que lhe dizer . Já o saudei, graças à boa criação que Deus me deu, porque isto de criação se a natureza não ajuda, é escusado trabalho humano. Eu, em menino fui sempre um primor de educação. Criou-me uma ama escrava; e, apesar de escrava e ama, nunca

menino fui sempre um primor de educação. Criou-me uma ama, escrava; e, apesar de escrava e ama, nunca lhe pus a boca no seio para mamar.

— Mas, Policarpo, tu tens direito a ser aleitado, e depois é obrigação da escrava alugada. Em vão chorava, a Florinda corria, desabotoava o corpinho, punha o seio de fora, e eu, por mais fome que tivesse; não lhe pegava sem pedir licença. Pedia por gesto; parece que era um gesto de olhos. . .

Aos cinco anos (era em 1831), como já sabia ler, davam-nos no colégio A Pátria, pouco antes fundada pelo Sr. Carlos Bernardino de Moura, com as mesmas doutrinas políticas que ainda hoje Sustenta. A minha alma que nunca se deu com política, dormia que era um gosto; mas os olhos não, esses iam por ali fora, risonhos, aprobatórios.

Agora mesmo, lendo naquela folha que o governo é que deu o dinheiro com que os jornais fizeram as festas abolicionistas, pensam que, se tivesse de explicar-me, fá-lo-ia como a comissão da imprensa; Não; seria grosseiro. Nunca se deve desmentir ninguém. Eu diria que sim, que era verdade, que o governo tinha pago tudo, as festas e uns aluguéis atrasados da casa do Sousa Ferreira, que para isso mesmo é que fora contratado o último empréstimo em Londres, que o Serzedelo, à custa do mesmo dinheiro, tinha reformado o pau moral; que as botinas novas do Pederneiras não tinham outra origem; e que o nosso amigo e chefe José Telha precisando de uma casaca para ir ao Coquelin, e que se meteu naquelas manifestações. O redator ouvia tudo satisfeito; e no dia seguinte começava assim o editorial: "Conforme havíamos previsto" (o resto como em 1844).

Podia citar casos honrosíssimos, como prova de boa criação. Um, deles nunca me há de esquecer, e é fresquinho.

Estando há dias a almoçar com alguns amigos, percebi que alguma coisa os amargurava. Não gosto de caras tristes, como não gosto delas alegres; —um meio-termo entre o Caju e o Recreio Dramático e o que vai comigo. Senão quando, com um modo delicado, perguntei o que é que tinham. Calaram-se, eu, como manda a boa criação, calei-me também e falei de outra coisa. Foi o mesmo que se os convidasse a pôr tudo em pratos limpos. Tratando-se de meu almoço, era condição primordial.

Um dos convivas confessou que no meio das festas abolicionistas não aparecia o seu nome, outro que era G dele que não aparecia outro que era o dele, e todos que os deles. Aqui e que eu quisera ser um homem malcriado. O menos que diria a todos, é que eles tanto trabalharam para a abolição dos escravos, como para a destruição de Nínive, ou para a morte de Sócrates. . Eu, com uma sabedoria só comparável à deste filósofo, respondi que a história era um livro aberto, e a justiça a perpétua vigilante. Um dos convivas, dado a frases, gostou da última, pediu outra e um cálice de Alicante. Respondi, servindo o vinho, que as reparações póstumas eram mais certas que a vida, e mais indestrutíveis que a morte. Da primeira vez fui vulgar, da segunda creio que obscuro; de ambas sublime e bem criado.

Em linguagem chã, todos eles queriam ir à Glória sem pagar o bond; creio que fiz um trocadilho. De mim, confesso que lá iria, se pudesse, com a mesma economia; mas, não havendo outro meio, pago o tostãozinho, e paro à porta do Club Beethoven, que anda agora em tais alturas, que já foi citado pela boca de eminente cidadão... Hão de concordar que este período vai um pouco embrulhado, mas não devo desembrulhá-lo; seria constipar a minha idéia.

Podia citar outros muitos casos de boa criação, realmente exemplares. Nunca dei piparotes nas pessoas que não conheço, não limpo a mão à parede, não vou bugiar, que é ofício feio, e ando sempre com tal cautela, que não piso os calos aos vizinhos. Tiro o chapéu, como fiz agora ao leitor; e dei-lhe os bons dias do costume. Creio que não se pode exigir mais. Agora, o leitor que diga alguma coisa, se está para isso, ou não diga nada, e boas noites.

[74] [16 junho]

BONS DIAS!

Recebi um requerimento, que me apresso em publicar com o despacho que lhe dei:

Aos pés de V Ex.a vai o abaixo assinado pedir a coisa mais Justa do mundo.
Rogo me preste atenção por alguns instantes; não quero tomar o precioso tempo de V Ex.a.
Não ignora V. Ex.a que, desde que nasci, nunca me furtei ao trabalho. Nem quero saber quem me chama, se é pessoa idônea ou não; uma vez chamado, corro ao serviço. Também não indago do serviço pode ser político, literário, filosófico, industrial, comercial, rural, seja o que for , uma vez que é serviço, lá estou. Trato com ministros e amanuenses, com bispos e sacristães sem a menor desigualdade.
Cheguei até (e digo isto para a mostrar atestados de tal ou qual valor que tenho), cheguei a fazer aposentar alguns colegas, que, antes de mim, distribuíam o trabalho entre si, distinguindo-se um, outro sobressaindo, outro pondo em relevo alguma qualidade particular. Não digo que houvesse injustiça na aposentação: estavam cansados' esta é a verdade E para a gente de minha classe a fadiga estrompa e até mata.
Ficando eu com o serviço de todos, naturalmente tinha muito que acudir, e repito a V. EX.a que nunca faltei ao dever. Não tenho presunção de bonito, mas sou útil, ajusto-me às circunstâncias e sei explicar as idéias.
Não é trabalho mas o excesso de trabalho que me tem cansado: um pouco, e receio muito que me aconteça o que se deu com os outros. Isto de se fiar uma pessoa no carinho alheio, na generalidade dos afetos é erro grave. Quando menos espera lá se vai tudo, chega alguma pessoa nova e (deixe V Ex.a lá falar o João ) ambas as mãos da experiência não valem um dedinho só da juventude.
Mas vamos ao pedido O que eu impetro da bondade de V Ex.a (se está na sua alçada) é uma licença por dois meses, ainda que seja sem ordenado; mas com ordenado seria melhor, porque há despesas a que acudir, a fim de ir às águas de Caxambu Seria melhor, mas não faço questão disso,; o que me importa é a licença, só por dois meses; no fim deles verá que volto robusto e disposto para tudo e mais alguma coisa.
Peço pouco, apenas um pouco de descanso. Deus, feito o mundo, descansou no sétimo dia. Pode ser que não fosse por fadiga, mas para ver não era melhor converter a sua obra ao caos; em todo o caso a Escritura fala de descanso, e é o que me serve Se o Supremo Criador não pode trabalhar, sem repousar um dia depois de seis, quanto mais este criado de V. Ex.a?
Não faltará quem conclua(mas não será i grande espírito de V. Ex.a) que, se eu algum direito tenho a uma herança, maiores e infinitos têm outros colegas, cujo trabalho é constante, ininterrupto e secular. Há aqui um sofisma que se destrói facilmente. Nem eu sou da classe da maior parte de tais companheiros, verdadeira plebe, para quem uma lei de Treze de Maio seria a morte a lavoura (do pensamento); nem os da minha categoria têm a minha idade, e, de mais a mais, revezam-se a miúdo, ao passo que eu suo e tressuo sem respirar.
Contando receber mercê, subscrevo me, com elevada consideração, de V Ex.a admirador e obrigado verbo Salientar.

O despacho foi este:

Conquanto o suplicante não junte documentos do que alega, é, todavia, de notoriedade pública o seu zelo e prontidão em bem-servir a todos. A licença, porém, só lhe pode ser concedida por um mês, embora com ordenado, porque, trabalhando as câmaras legislativas, mais que nunca é necessária a presença do suplicante, cujo caráter e atividade, legítima procedência e brilhante futuro folgo em reconhecer e fazer públicos. Se tem trabalhado muito, é preciso fizer por outro lado, que o trabalho é a lei da vida e que sem este o suplicante não teria hoje a posição culminante que alcançou e na qual espero que se conservará honrosamente por longos anos, como todos havemos mister. Lavre-se portaria, dispensados os emolumentos.

Boas noites.

[75] [26 junho]

BONS DIAS!

Eu, se tivesse credito na praça pedia emprestados a casamento uns vinte contos de réis, e ia comprar libertos. Comprar libertos não é expressão clara; por isso continuo.

Conhece o leitor um livro do célebre Gógol, romancista russo, intitulado Almas Mortas? Suponhamos que não conhece, que é para eu poder expor a somente da minha idéia. I á vai em duas palavras.

Chamam-se almas os campônios que lavram as terras de um proprietário, e pelos quais, conforme o número, paga este uma taxa ao Estado. No intervalo do lançamento do imposto, morrem alguns campônios e nascem outros. Quando há déficit, como o proprietário tem de pagar o número registrado, primeiro que se faça outro recenseamento, chamam-se almas mortas os campônios que faltam.

Tchitchikof, um espertalhão da minha marca, ou talvez maior, lembra-se de comprar as almas mortas de vários proprietários. Bom negócio para os proprietários, que vendiam defuntos ou simples nomes, por dez-réis de mel coado. Tchitchikof, logo que arranjou umas mil almas mortas, registrou-as como vivas pegou dos títulos do registro, e foi ter a um Monte de Socorro, que, à vista dos papéis legais, adiantou ao suposto proprietário uns 200.00 rublos; Tchitchikof meteu-os na mala e fugiu para onde a polícia russa o não pudesse alcançar.

Creio que entenderam; vejam agora o meu plano, que é tão fino como esse, e muito mais honesto. Sabem que a honestidade é como a chita, há de todo o preço, desde meia pataca.

Suponha o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio, e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava eu ao seu estabelecimento, e perguntava-lhe:

— Os seus libertos ficaram todos?

— Metade só, ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; -consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.

— Quer o senhor vender-mos?

Espanto do leitor, eu, explicando:

— Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram.

O leitor assombrado:

—Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor...

— Não lhe importe isso. Vende-mos?

— Libertos não se vendem.

— É verdade, mas a escritura de venda terá a data de 29 de abril nesse caso, não foi o senhor que perdeu os escravos, fui eu. Os preço marcados na escritura serão os da tabela da lei de 1885- mas e realmente não dou mais de dez mil-réis por cada um.

Calcula o leitor:

— Duzentas cabeças a dez mil-réis são dois contos. dois conto por sujeitos que não valem nada, porque já estão livres, é um bom negócio

Depois refletindo:

— Mas, perdão, o senhor leva-os consigo?

— Não, senhor: ficam trabalhando para o senhor; cu só levo escritura.

— Que salário pede por eles?

— Nenhum, pela minha parte. ficam trabalhando de graça. O senhor pagar-lhes-á o que já paga.

Naturalmente, o leitor, à força de não entender, aceitava o negócio Eu ia a outro, depois a outro. depois a outro, até arranjar quinhentos libertos, que é até onde podiam ir os cinco contos emprestados, recolhia-me à casa, e ficava esperando.

Esperando o quê? Esperando a indenização, com todos os diabos Quinhentos libertos, a trezentos mil-réis. termo médio, eram cento e cinqüenta contos; lucro certo: cento e quarenta e cinco.

Porquanto, isto de indenização, dizem uns que pode ser que sim outros que pode ser que não: é por isso que eu pedia o dinheiro

casamento. Dado que sim, passa e casava (com a leitora, por exemplo); dado que não, ficava solteiro e não perdia nada, porque o dinheiro era de outro. Confessem que era um bom negócio.

Eu até desconfio que há já quem faça isto mesmo, com a diferente de ficar com os libertos. Sabem que no tempo da escravidão, os escravos eram anunciados com muitos qualificativos honrosos, perfeito cozinheiros, ótimos copeiros, etc. Era, com outra fazenda, o mesmo

que fazem os vendedores, em geral: superiores morins, lindas chitas soberbos cretones. Se os cretones, as chitas e os escravos se anunciassem' não poderiam fazer essa justiça a si mesmos.

Ora, li ontem um anúncio em que se oferece a aluguel. não m lembra em que rua,— creio que na do Senhor dos Passos,—uma insigne engomadeira. Se é falta de modéstia, eis aí um dos triste frutos da liberdade, mas se é algum sujeito que já se me antecipou. .

Larga Tchitchikof de meia tigela! Ou então vamos fazer o negócio a meias.

BOAS NOITES.

[76] [19 junho]

BONS DIAS!

Não gosto de ver censuras injustas. Há dias, um eminente senador disse que a Câmara dos Deputados era a câmara de dois domingos, e disse a verdade, porque ali um sábado e um domingo são a mesma coisa. Não a censurou por isso, entretanto, mas por adiar para o sábado os requerimentos, isto é, mandar-lhes o laço de seda com que eles se enforquem logo.

Sejamos justos. A Câmara, não fazendo sessão aos sábados, obedece a um alto fim político:—imitar a Câmara dos Comuns ingleses, que nesse dia também repousa. Deste modo, aproxima-nos da Inglaterra, berço das liberdades parlamentares, como dizia um mestre que tive e que me ensinou as poucas idéias com que vou acudindo as misérias da vida. Dele é que herdei a espada rutilante da injustiça,— o timeos Danaos,—o devolvo-lhe intacta a injúria, e outros vinténs mais ou menos magros.

Dir-me-ão que os comuns ingleses descansam no sábado, porque ficam estafados das sessões de oito, nove e dez horas, que é o tempo que elas duram nos demais dias.

E verdade; mas cumpre observar que os comuns começam a trabalhar de tarde e vão pela noite dentro, depois de terem gasto a primeira parte do dia nos seus próprios negócios. Deste modo estão livres e prontos para ir até a madrugada, se preciso for. Trabalham com a fresca, despreocupados, tranqüilos. Não acontece o mesmo conosco. As nossas sessões parlamentares começam ao meio-dia, hora de calor, sem dar tempo a fazer alguma coisa particular; e depois o clima é diferente. Nem já agora é possível tornar aos sábados. O Sr. Barão de Cotegipe disse que desde 1826 dormem projetos de lei nas pastas das comissões do Senado, com os requerimentos da Câmara deve acontecer a mesma coisa, mas suponhamos que só começam em 1876...

Censuras não faltam. Já ouvi censurar um dos nossos costumes parlamentares, que justamente mais me comovem; refiro-me ao de levantar a sessão, quando morre algum dos membros da casa. A notícia é dada por um deputado ou senador, que faz um discurso, pondo em relevo as qualidades do finado. Às vezes o defunto não prestou ao Estado o menor serviço; não importa, essa é justamente a beleza do sistema democrático e de igualdade que deve reger, mais que todos os corpos legislativos. Para o parlamento, como para a morte, como para a Constituição, todos são legisladores, todos merecem igual cortesia e piedade.

Os censuradores alegam que este uso não existe em parte nenhuma, fora daqui. O argumento Aquiles (como me diria o citado mestre) é que, tendo sido as câmaras inventadas para tratar dos negócios públicos, a morte de um de seus membros deve pesar menos, muito menos, que o dever social. Daí o discurso em que o presidente deve noticiar a morte, com palavras de saudade, e passar à ordem do dia.

Os preconizadores de hábitos peregrinos chegam a citar o que agora mesmo se deu no parlamento de Inglaterra, quando chegou a

notícia da morte do genro da rainha, que não era membro da Câmara dos Lords, mas podia sê-lo, se não fosse imperador da Alemanha. A notícia foi comunicada a ambas as câmaras por um ministro respondeu-lhe o leader da oposição, e continuaram os trabalhos, durando os da Câmara até às duas da madrugada.

Mas quem não vê que nem o exemplo nem o argumento servem ao nosso caso?

Quanto ao exemplo, basta considerar que, posto que o imperador fosse um digno e grande homem, não era membro ele de nenhuma das casas. Fizeram-se mensagens à rainha e à imperatriz.

Além disso, pode ser que, realmente, nesse dia houvesse negócios urgentes. Digo isto, porque o discurso do ministro na Câmara dos Lords, respeitoso e grave, ocupa apenas doze linhas no Times, e o da oposição onze. Na dos Comuns, o do ministro tem nove linhas, o da oposição oito. Cabe ainda notar que ninguém mais falou. Finalmente dali em diante proferiram-se na Câmara dos Comuns. sobre diversos projetos, mais de cinqüenta discursos.

Quanto ao argumento, não há nada mais falho. É certo que as câmaras foram criadas para curar principalmente dos negócios públicos; mas onde é que constituições escritas revogaram leis do coração humano? Podem transtorná-las, e certo' como na dura Inglaterra, na França inquieta, na Itália ambiciosa; mas, tais são as nossas condições. Demais, a veneração dos mortos cimenta a amizade dos vivos.

Ponhamo-nos de acordo. Se a Câmara não faz sessão aos sábados, para acompanhar a dos Comuns, aqui-del-rei. Se não acompanha a dos Comuns, e se vai embora, sempre que morre algum membro terá igual censura. Ponhamo-nos de acordo.

Boas noites.

[77] [19 julho]

BONS DIAS!

Quem me não fez bei de Tunes cometeu um desses erros imperdoáveis, que bradam aos céus.

Suponhamos por um instante que eu era bei de Tunes. Antes de mais nada, tinha prazer de viver em Tunes, que é um dos mais desenfreados desejos. Depois, não entendia nada do que me dissessem, nem os outros me entendiam, e para estabelecer relações cordiais. não há melhor caminho. O Sr. Von Stein fez-se amigo dos índios do Xingu, recitando versos de Goethe.

Não perderia o gosto cá do Rio, porque levaria naturalmente assinaturas de jornais; leria tudo, a questão da revista cível n.° 10.893, o imortal processo da Bíblia, os debates do parlamento os manifestos políticos, etc quando alguma coisa me parecesse dita ou escrita em dialeto barbaresco, teria o meu colégio de intérpretes. que me explicaria tudo

Não indo mais longe, acabo de ler no discurso do Sr. Senador Leão Veloso uma frase, que, se eu estivesse em Tunes, não lhe perderia o sentido. S. EX a declarou que a vitaliciedade do cargo não o segregou daqueles que o elegeram. Ora, os que o elegeram vão morrendo e hão de ir morrer todos, como já devem ter morrido os que elegeram o Sr. Visconde do Serro Frio. Como é que não há segregação! Há e é uma das vantagens da instituição. Se em 1871 os Srs. Silveira Martins e Barão de Mauá fossem vitalícios, não haveria o recurso aos eleitores, que pôs o Sr. Mauá fora da câmara. Quando o primeiro desafiasse o segundo a irem pleitear ante os eleitores liberais o procedimento de ambos, responderia o Sr. Mauá:

Mas, meu caro colega, os meus eleitores estão mortos. Há dois dias vivia o Bandeira, de Pelotas; pois morreu, aqui está o telegrama, que recebi agora mesmo da família. Sabe que somos velhos conhecidos . . .

Entretanto, aquela frase, que em português dá este resultado, talvez possa ser explicada pelo arábico, mas eu não sou bei de Tunes.

Outras muitas coisas me explicará o colégio de intérpretes. Não as digo todas; mas aqui vai mais uma.

Os espiritistas brasileiros acabam de dar um golpe de mestre. Apareceu por aqui um médium, Dr. Slade é o seu nome, com a fama de ser prodigioso. A Federação espírita Brasileira nomeou uma comissão para estudar os fenômenos de escritura direta sobre ardósias e outros efeitos físicos produzidos com o médium. Pois, senhores, não achou que o homem valesse a fama; declarou que os trabalhos ficaram muito abaixo do que esse mesmo médium conseguiu na Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos e Austrália. É verdade que a própria Federação explica a diferença. Todos os que estudam os fenômenos espíritas (diz ela) conhecem que as mediunidades estão sujeitas a esses eclipses." E noutro lugar: Sabem todos que os invisíveis não estão servilmente à nossa disposição."

Ora tudo isto, que parece algaravia, sendo l do por um espírita, é como a língua de Voltaire, pura, límpida, nítida, e fácil. Os invisíveis não estão servilmente à nossa disposição Não falo do enriquecimento da língua com a palavra mediunidade, que é nova, sem ser esbelta.

Fosse, eu bei de Tunes, e o meu colégio me explicaria tudo isso e mais isto: Somente lamentamos que nesses eclipses da sua faculdade, O medium, sem dúvida por sugestões malignas, busque simular os fenômenos que obtém nas condições normais..."

Ao que parece, o medium não só foi ( com perdão da palavra) apenas minimum, mas até procurou embaçar a Federação. Não andou bem; e a Federação cumpriu o Seu dever desvendando as sugestões malignas. Nem pareça que isto mesmo foi sugestão de despeito; a Federação conclui francamente aquele período: ...Lato aqui plenamente verificado."

Valha-me Nossa Senhora! Que porção de coisas obscuras, que eu nunca hei de entender! E dai, quem sabe? Schopenhauer chegou a crer nas mesas que giram; há quem acredite no casamento da constituição americana com o sistema parlamentar. Não é muito acreditar nos motivos do eclipse do Dr. Slade, mesmo sem entendê-los. .. Ah! por que não me fazem bei de Tunes!

Boas noites.

[78] [29 julho]

BONS DIAS!

Antes de mais nada deixem-me dar um abraço no Luís Murat, que acaba de não ser eleito deputado pelo l 2.° distrito do Rio de Janeiro. Eu já tinha escovado a casaca e o estilo para o enterro do poeta e o competente necrológio; ninguém está livre de uma vitória eleitoral. Escovei-os e esperei as notícias.

Vieram elas, e não lhe digo nada: dei um salto de prazer. Cheguei à janela; vi que as rosas,—umas grandes rosas encarnadas que Deus me deu, —vi que estavam alegres e até dançavam, a música era um bater de asas de pássaros brancos e azuis, que apareceram ali vindos não sei donde, nem como.

Sei que eram grandes, que batiam as asas. que as rosas bailavam e que as demais plantas pareciam exalar os melhores cheiros. Umas vozes surdas diziam rindo: Murat, derrotado. Murat, derrotado.

E que bonita derrota. Deus de misericórdia! Podia perder a eleição por vinte ou trinta votos; .seria então um meio desastre, porque abria novas e fundadas esperanças. Mas, não, senhor, a derrota foi completa; nem cinqüenta votos. Por outros termos, é um homem liberto teve a sua lei de 13 de maio: "Art. 1.°. Luís Murat continuará a compor versos. Art. 2.°. Ficam revogadas as disposições em contrário".

Não é que seja mau ter um lugar na Câmara. Tomara eu lá estar. Não posso; não entram ali relojoeiros. Poetas entram, com a condição de deixar a poesia. Votar ou poetar. Vota-se em prosa, qualquer que seja, prosa simples, ruim prosa, boa prosa. bela prosa, magnifica prosa, e até sem prosa nenhuma, como o Sr. Dias Carneiro, para citar um nome. Os versos, quem os fez, distribui-os pelos parentes e amigos e faz uma cruz às musas. Alencar (e era dos audazes) tinha um drama no prelo, quando foi nomeado ministro. Começou mandando suspender a publicação; depois fê-lo publicar sem nome de autor. E note-se que o drama era em prosa...

Suponhamos que Luís Murat saia eleito, e que seu rival, o Augusto Teixeira é que ficava com os quarenta votos. Com certeza, os versos de Murat não passavam a ser feitos pelo Teixeira, e era talvez, uma vantagem. Em todo caso. ficávamos sem eles. Onde estão os do Dr. Afonso Celso? José Bonifácio, se os fazia. enterrava-os na chácara. . . Podia citar outros, mas não quero que a Câmara brigue comigo.

Vá lá abraço, e adeus. Agora é arrazoar de dia no escritório de advogado, e versejar de noute. Não fazem mal as musas aos doutores disse um poeta podem fazê-lo aos deputados.

Antes de mais nada, disse eu a princípio: mas francamente não vi se tinha mais alguma coisa que dizer. Prefiro calar-me, não sem comunicar aos leitores uma notícia de algum interesse.

Os leitores pensam com razão que são apenas filhos de Deus, pessoas, indivíduos, meus irmãos (nas prédicas), almas (nas estatísticas) membros (nas sociedades), praças (no exército), e nada mais. Pois são ainda uma certa coisa, — uma coisa nova, metafórica, original.

Ontem indo eu no meu bond das tantas horas da tarde para (não digo o lugar), ao entrarmos no Largo da Carioca, costeamos outro bond, que ia enfiar pela Rua de Gonçalves Dias. O condutor do meu bond falou ao do outro para dizer que na viagem que fizera da estação do Largo do Machado até a cidade, trouxe um só passageiro. Mas não contou assim, como aí fica; contou por estas palavras: "Que te dizia eu? Fiz uma viagem à toa; apenas pude apanhar um carapicu . . . "

Aí está o que é o leitor: um carapicu este seu criado; carapicus os nossos amigos e inimigos. Aposto que não sabia desta? Carapicu. . . Como metáfora, é bonita; e podia ser pior.

Boas noites.

[79] [16 setembro]

BONS DIAS!

Venho de um espetáculo longo, em parte interessante, em parte aborrecido, organizado em benefício do incidente Manso .

Começou por uma comédia de Musset: Il faut qu’une porte soite ouverte ou fermée. Não confundam com o drama de grande espetáculo Fechamento das Portas, representado há dias no Liceu com alguma aceitação. Não: a peça de Musset é um atozinho gracioso e límpido. Trata-se de um conde, que vai visitar uma marquesa, e não acaba de sair nem de ficar, até que a dama conclui por lhe dar a mão de esposa. Clara alusão ao incidente Manso.

No dia seguinte, tivemos um drama extenso e complicado, Cujos atos contei enquanto me restaram dedos; mas primeiro acabaram-se-me os dedos que os atos. Cuido que não passariam de vinte, talvez dezenove. Boa composição, lances novos, cenas de efeito, diálogos bem travados. Um dos papéis, escrito em português e latim, produziu enorme sensação pelo inesperado. Dizem que a inovação vai ser empregada cá fora, por alguns autores dramáticos, cansados de escrever em uma só língua. e, às vezes, em meia língua. Os monólogos, os diálogos, que eram vivíssimos. e os coros foram, se assim se pode dizer de obra humana, irrepreensíveis.

Essa peça, começada no segundo dia, durou até o terceiro, porque o espetáculo, para em tudo ser interessante, imitou esse uso das representações japonesas, que não se contentam com quatro OU cinco horas. Não bastando o drama, deram-nos ainda uma comédia de Shakespeare, As you like it, — ou, como diríamos em português Como aprouver a Vossa Excelência. Posto que inteiramente desconhecida do público, pareceu agradar bastante. dois outros espectadores aplaudiram por engano umas cenas, em vez de outras; mas a culpa foi dos amadores, que não pronunciaram bem o inglês.

Como acontece sempre, algumas pessoas, para se mostrarem sabidas dos teatros estrangeiros, disseram que era preferível dar outra comédia do grande inglês: Muito Barulho Para Nada. Mas esta opinião não encontrou adeptos.

Pela minha parte, achei o defeito da extensão. Espetáculos daqueles não devem ir além de duas ou três horas. Verdade é que, sendo numerosos os amadores, todos quereriam algum papel, e para isso não bastava esse ato de Musset. Bem: mas para isso mesmo tenho eu o remédio, se me consultassem.

O remédio era o fonógrafo, com os aperfeiçoamentos últimos que lhe deu o famoso Edison. Fez-se agora a experiência em Londres onde por meio do aparelho se ouviram palavras, cantigas e risadas do próprio Edison, como se ele ali estivesse ao pé. Um dos jornais daquela cidade escreve que o fonógrafo, tal qual está agora aperfeiçoado. é instrumento de duração quase ilimitada. Pode conservar tudo. Justamente o nosso caso.

Acabada a representação, em pouco tempo, segundo convinha à urgência e gravidade do assunto e do momento, se ainda houvesse amadores que quisessem um papel qualquer, grande ou pequeno, o diretor faria distribuir fonógrafos, onde cada um daquele depositaria as suas idéias; podiam ajustar-se três ou quatro para os diálogos.

A reprodução de todas as palavras ali recolhidas podia ser feita, não à vontade do autor, mas vinte e cinco anos depois. Ficavam só as belezas do discurso; desapareciam os inconvenientes.

E, reparando bem, está aqui o remédio a um dos males que afligem o regímen parlamentar: o abuso da palavra. Não e fácil, mas é possível. Basta fazer uma escolha de oradores, um grupo para cada negócio, por ordem; os restantes confiariam ao fonógrafo os discursos que a geração futura escutaria.

No ano de l913, por exemplo, abriam-se os fonógrafos, eram as formalidades necessárias, e os nossos filhos ouviriam a própria voz de algum orador atual discutir o orçamento da receita geral do Império: . . . `E, perguntei ao nobre ministro, sabe que faleceu o tabelião de Ubatuba! Esse homem padecia de uma afecção cardíaca, mas ia vivendo; tinha mulher e quatro filhos,—o mais velho dos quais não passava de sete anos. Note S. Ex.a que o tabelião nem era filho da província; nasceu em Cimbres, e de uma família respeitável; um dos irmãos foi capitão do l.o regimento de cavalaria, e esteve em tororó a sua fé de ofício e das mais honrosas que conheço, lê-las-á daqui a pouco; mas, como dizia, o tabelião de Ubatuba ia vivendo, com a sua afecção cardíaca e dois dedos de menos, circunstância esta que lhe tornava ainda mais penoso escrever, mas à qual se acomodava pela necessidade. A perda de dois dedos originou-se de um fato doméstico, com o qual nada tem esta Câmara, posto que, ainda aí se possa ver um exemplo, não direi raro, mas precioso, das virtudes daquele homem. Chovia, uma das cunhadas do tabelião. . . Mas eu pretiro chegar ao caso principal, a entrada do alferes fobias. Senhores, êste alferes . . .

E deste modo, discursos que hoje não se lêem, chegariam à posteridade com a frescura da própria cor do orador. Os jornais do tempo os reproduziriam, os sociologistas viriam lê-los e analisá-los, e assim os lingüistas, os cronistas, e outros estudiosos, com vantagem para todos, começando talvez por nós,—ingratos!

Boas noites.

[80] [28 outubro]

BONS DIAS!

Viva a galinha com a sua pevide. Vamos nós vivendo com a nossa policia. Não será superior, mas também não é inferior à policia de Londres, que ainda não pôde descobrir o assassino e estripador de mulheres. E dizem que é a primeira do universo. O assassino, para maior ludibrio da autoridade, mandou-lhe cartões pelo correio.

Eu, desde algum tempo, ando com vontade de propor que aposentemos a Inglaterra... Digo, aposentá-la nos nossos discursos e citações. Neste particular, tivemos a principio a mania francesa e revolucionária; folheiem os Anais da Constituinte, e verão. Mais tarde ficou a França constitucional e a Inglaterra: os nomes de Pitt, Russel. Canning, Bolingbrook, mais ou menos intactos, caíram da tribuna parlamentar. E frases e máximas! Até 1879, ouvi proclamar cento e dezenove vezes este aforismo inglês: "A Câmara dos Comuns pode tudo, menos fazer de um homem uma mulher, ou vice-versa.

"Justamente o que a nossa Câmara faz, quando quer, dizia eu comigo,

Pois bem, aposentemos agora a Inglaterra; adotemos a Itália. Basta advertir que, há pouco tempo, lá estiveram (ou ainda estão) vinte e tantos deputados metidos em enxovia, só por serem irlandeses. Nenhum dos nossos deputados é irlandês; mas se algum vier a sê-lO, juro que será mais bem tratado. E, comparando tanta polícia para pegar deputados com tão pouca para descobrir um estripador de mulheres, folgazão e científico, a conclusão não pode ser senão a do começo: — Viva a galinha com a sua pevide...

Aqui interrompe-me o leitor: — Já vejo que é nativista! E eu respondo que não sei bem o que sou O mesmo me disseram anteontem, falando-se do projeto do meu ilustre amigo senador Taunay. Como eu dissesse que não aceitava o projeto, integralmente, alguém tentou persuadir-me que eu era nativista. Ao que respondi:

— Não sei bem o que sou. Se nativista é algum bicho feio, paciência; mas, se quer dizer exclusivista, não é comigo.

Não se pode negar que o Sr. Senador Taunay tem o seu lugar marcado no movimento imigracionista, e lugar iminente; trabalha, fala, escreve, dedica-se de coração, fundou uma sociedade, e luta por algumas grandes reformas.

Entretanto, a gente pode admirá-lo e estimá-lo, sem achar que este último projeto seja inteiramente bom. Uma coisa boa que lá está. é a grande naturalização. Não sei se ando certo, atribuindo àquela palavra o direito do naturalizado a todos os cargos públicos. Pois, senhor. acho acertado. Com efeito, se o homem é brasileiro e apto, por que não será para tudo aquilo que podem ser outros brasileiros aptos? Quem não concordará comigo (para só falar de mortos), que é muito melhor ter como regente, por ser ministro do império, um Guizot OU um Palmerston, do que um ex-ministro (Deus lhe fale na alma!) que não tinha este olho?

Mas o projeto traz outras coisas que bolem comigo, e até uma que bole com o próprio autor. Este faz propaganda contra os chins; mas, não havendo meio legal de impedir que eles entrem no império aqui temos nós os chins, em vez de instrumentos de trabalho, constituídos em milhares de cidadãos brasileiros, no fim de dois anos, ou até de um. Excluí-los da lei é impossível. Ai fica uma conseqüência desagradável para o meu ilustre amigo.

Outra conseqüência. O digno Senador Tannay deseja a imigração em larga escala. Prefeitamente. Mas, se o imigrante souber que, ao cabo de dois anos, e em certos casos ao fim de um, fica brasileiro à força, há de refletir um pouco e pode não vir. No momento de deixar a pátria, ninguém pensa em trocá-la por outra; todos saem para arranjar a vida.

Em suma,—e é o principal defeito que lhe acho,—este projeto afirma de um modo estupendo a onipotência do Estado. Escancarar as portas, sorrindo, para que o estranho entre. é bom e necessário; mas mandá-lo pegar por dois sujeitos, metê-lo a força dentro de casa para almoçar, não podendo ele recusar a fineza senão jurando que tem outro almoço à sua espera, não é coisa que se pareça com liberdade individual.

Bem sei que ele tem aqui um modo de continuar estrangeiro: é correr, no fim do prazo, ao seu consulado ou à Câmara Municipal, declarar que não quer ser brasileiro, e receber um atestado disso. Mas, para que complicar a vida de milhares de pessoas que trabalham, com semelhante formalidade? Além do aborrecimento, há vexame:—vexame para eles e para nós. se o número dos recusantes for excessivo. Haverá também um certo número de brasileiros por descuido, por se terem esquecido de ir a tempo cumprir a obrigação legal. Esses não terão grande amor à terra que os não viu nascer. Lá diz São Paulo, que não é circuncisão a que se faz exteriormente na carne, mas a que se faz no coração.

O Sr. Tannay já declarou em brilhante discurso, que o projeto é absolutamente original. Ainda que o não fosse, e que o princípio existisse em outra legislação, era a mesma coisa. O Estado não nasceu no Brasil; nem é aqui que ele adquiriu o gosto de regular a vida toda. A velha república de Esparta, como o ilustre senador sabe' legislou até sobre o penteado das mulheres; e dizem que em Rodes era vedado por lei trazer a barba feita. Se vamos agora dizer a italianos e alemães, que, no fim de um ou dois anos. não são mais alemães nem italianos, ou só poderão sê-lo com declaração escrita e passaporte no bolso, parece-me isto muito pior que a legislação de Rodes.

Desagravar a naturalização, facilitá-la e honrá-la, e, mais que tudo tornar atraente o país por meio de boa legislação, reformas largas liberdades efetivas, eis aí como eu começaria o meu discurso no Senado, se os eleitores do Império acabassem de crer que os meus quarenta anos já lá vão, e me incluíssem em todas as listas tríplices. Era assim que eu começaria o discurso. Como acabaria, não sei; talvez nos braços do meu ilustre amigo.

Boas noites.

[81] [10 novembro]

BONS DIAS!

Há anos, por ocasião do movimento Ester de Carvalho, aquela boa atriz que aqui morreu, lembra-me haver lido nos jornais um pequenino artigo anônimo. Nem se lhe podia chamar artigo; era uma pergunta nua e seca. O numeroso partido da atriz estava em ação; havia palmas, flores, versos, longas e brilhantes manifestações públicas. E então dizia a pergunta anônima: "Por que não aproveitaremos este movimento Ester de Carvalho para ver se alcançamos o fechamento das portas?"

A pergunta tinha um ar esquisito, à primeira vista: mas, era a mais natural do mundo. Entretanto não se fez nada por dois motivos, um fácil de entender, que era a absorção do pensamento em um só assunto. A alma não se divide. A questão do fechamento das portas era exclusiva, pedia as energias todas, inteiras, constantes, lutando dia por dia

A segunda razão é que há anos e há séculos de revoluções e transformações. Para o caso de que se trata não era preciso o século, mas o ano era indispensável. Entre a vinda de Jesus e a norte de César há pouco mais de quarenta anos: e a Revolução Francesa chegou à Bastilha depois de feita nos livros e iniciada nas províncias, desde os albores do século XVIII.

Aqui o caso era de um ano mesmo que viu a extinção da escravidão. Todas as liberdades são irmãs; parece que, quando uma dá rebate, as outras acodem logo.

Aí temos explicado o movimento atual, que, em boa hora, vai sendo praticado em paz e harmonia. Note-se bem que o movimento outrora tinha um caráter meio duvidoso, pedia-se o fechamento das portas aos domingos. O domingo, só por si, sem mais nada. é um dia protestante; e o movimento, limitando o descanso a esse dia, como que parecia inclinar à igreja inglesa. Daí a frieza do clero católico. Agora, porém, a plataforma (se me é lícito dizer uma palavra que pouca gente entende) abrange os domingos e dias santos. Deste modo não se pede só o dia do Senhor, mas esse e os mais que o rito católico estabelece em honra dos grandes mártires ou heróis da fé. e dos fastos da Igreja desde os primitivos tempos.

Seguramente, há maior número de dias vagos, mas o trabalho dos outros compensará os perdidos; por esse lado, não vejo perigo. Pode dar-se também que a definição das férias se estenda um pouco mas, pelo tempo adiante. Por exemplo, o dia 2 de novembro é feriado ou não? Vimos este ano duas opiniões opostas, a do Senado e a da Câmara. O Senado declarou que era, e não deu ordem do dia; a Câmara entendeu que não era, e deu ordem do dia. Foi o mesmo que se não desse, é verdade, porque lá não apareceu ninguém; mas a opinião ficou assentada. O Senado comemora os defuntos, a Câmara não. Talvez a Câmara não deseje lembrar o próximo fim dos seus dias O Senado, embalsamado pela vitaliciedade, pode entrar sem susto nos cemitérios. Não é a lei que o há de matar.

Pois bem, ainda nesses casos o acordo é possível entre caixeiros e patrões; fechem-se as portas ao meio-dia. Os patrões e os rapazes irão de tarde aos cemitérios.

Noto, e por honra de todos, que não tem havido distúrbios nem violências. Há dias, é certo, um grupo protestou contra uma casa do Largo de S. Francisco de Paula, que estava aberta: mas quem mandou fechar as portas da casa não foi o grupo, foi o subdelegado. Tem havido muita prudência e razão, O próprio ato do subdelegado, olhando-se bem para ele foi bem feito. Já lá dissera Musset estas palavras: Il faut qu'une porte soit ouverte ou fermée. Não podendo estar abertas as da loja de grinaldas, foi muito melhor fechá-las. "1: assim que eu gosto dos médicos especulativos' dizia um personagem de Antônio José.

Não sei se tenho mais alguma coisa que dizer. Creio que não. A questão chinesa está absolutamente esgotada; tão esgotada que tendo eu anunciado por circular manuscrita, que daria um prêmio de conto de réis a quem me apresentasse um argumento novo, quer a favor, quer contra os chins, recebi carta de um só concorrente, dizendo-me que ainda havia um argumento científico, e era este: "A criação animal decresce por este modo: —o homem, o chim, o chimpanzé..." Como vêem, é apenas um calembour; e se não houvesse no Evangelho e em Camões, era certo que eu quebrava a cara do autor; limitei-me a guardar o dinheiro no bolso.

Boas noites.

[82] [18 novembro]

BONS DIAS!

Agora acabou-se! Já se não pode contar um caso, meio trágico em casa de família, que não digam logo vinte vozes:

— Já sei, outra Mme. Torpille!

— Perdão, minha senhora, eu vi o que lhe estou contando. O homem não tinha pés nem cabeça...

Mas tinha uma cruz latina no peito.

— Isso não sei, pode ser. A senhora sabe se trago também alguma cruz latina ao peito'? Pois saiba que sim. . . Olhe, a cruz latina também figurou agora na revolução de rapazes em Pernambuco; a diferença é que não era no peito que eles a levavam mas às costas. Por falar em latim, sabem que Cícero...

Aqui não houve mais retê-las; todas voaram, umas para as janelas. Outras para os pianos, outras para dentro; fiquei só, peguei no chapéu e vim ter com os mous leitores, que são sempre os que pagam as favas.

E, prosseguindo, digo que o velho Cícero escreveu uma coisa tão certa, que até eu. que não sei latim, só por vê-la traduzida em sueco entendi logo o que vinha a ser, e é isto: Grata populo est tabella. . . Em português: "O voto secreto agrada ao povo, porque lhe dá força para dissimular o pensamento e olhar com firmeza para os outros".

Ora bem, este voto secreto, que me é tão grato, quer o nosso ilustre Senador Candido de Oliveira arrancá-lo ao eleitor, no projeto eleitoral que apresentou ao Senado. Note-se que foi justamente por ser secreto o voto, que eu, embora conservador, votei em S. Ex.' para a lista tríplice. Não gostei da chapa do meu partido, e disse comigo: - Não, senhor; voto no Candido, no Afonso e no Alvim . Quando mais tarde o Cruz Machado (Visconde do Serro Frio) me falou na eleição, declarei- lhe que ainda uma vez levara às urnas a lista da nossa gente. Era mentira; mas para isso mesmo é que vale o voto secreto.

S. Ex.a quer o voto público. Há de ser escrito o nome do candidato em um livro com a assinatura do eleitor (art. 3.° § 1.° ) . Concordo que este modo dá certa hombridade e franqueza, virtudes indispensáveis. E fora de dúvida que, com o voto público. o caixeiro vota no patrão, o inquilino no dono da casa (salvo se o adversário lhe oferecer outra mais barata. o que é ainda uma virtude, a economia). o fiel dos feitos vota no escrivão, os empregados bancários votam no gerente. e assim por diante. Também se pode votar nos adversários. Mas. enfim. nem todos são aptos para a virtude. Há muita gente capaz de falar em particular de um sujeito, e ir jantar publicamente com ele. São temperamentos.

Se as nossas eleições fossem sempre impuras, vá que viesse aquela disposição no projeto; mas é raro que a ordem e a liberdade se não dêem as mãos diante das urnas. Uma eleição entre nós pode ser aborrecida, graças ao sistema de chamadas nominais, que obriga a gente e não arredar pé da seção em que vota, mas são em geral boas. E depois, se o voto secreto já fez algum bem neste nosso pequeno mundo, por que aboli-lo?

Bem sei tudo o que se pode de bem e de mal acerca do voto secreto. Em teoria, realmente, o público é melhor. A questão é que não permite o trabalhinho oculto, e, mais que tudo, obsta a que a gente vote contra um candidato, e vá jantar com e]e à tarde, por ocasião da filarmônica e dos discursos.

Voto público e muito público—foi o que aquela linda Duquesa de Cavendish alcançou, estando a cabalar por um parente parou dentro do carro à porta de um açougueiro e pediu-lhe o voto. O açougueiro, que era do partido oposto, disse-lhe brincando:

—Votarei, se Vossa Senhoria me der um beijo.

E a duquesa, como toda gente sabe, estendeu-lhe os lábios, e ele depositou ali um beijinho, que já agora é melhor julgar que experimentar. Neste sentido, todos somos açougueiros. Tais votos são mais que públicos. Complete S. EX.a o seu projeto, estabelecendo que as candidaturas só poderão ser trabalhadas por mulheres, amigas do candidato, devendo começar pelas mais bonitas, e está abolido o voto secreto. O mais que pode acontecer, é a gente faltar a nove ou dez pessoas, se a vaga for só uma; mas creia S. EX a que não há beijo perdido.

Tinha outra coisa que dizer acerca do projeto ou antes, que perguntar a S. Ex.a, mas o tempo urge.

Há uma disposição, porém, que não posso deixar de agradecer desde já; é a abolição do 2.° escrutínio, saindo deputado com os votos que tiver; maioria relativa, em suma. Tem um distrito 1.900 eleitores inscritos; comparecem apenas 104; eu obtenho 20 votos' o meu adversário 19, e os restantes espalham-se por diferentes nomes. Entro na Câmara nos braços de vinte pessoas. Há famílias mais numerosas, mas muito menos úteis.

Boas noites

[83] [27 dezembro]

BONS DIAS!

Cuidava eu que era o mais precavido dos meus contemporâneos. A razão é que saio sempre de casa com o Credo na boca, e disposição feita de não contrariar as opiniões dos outros. Quem talvez me vencia nisto era o Visconde de Abaeté, de quem se conta que, nos últimos anos, quando alguém lhe dizia que o achava abatido:

—Estou, tenho passado mal, respondia ele.

Mas se, vinte passos adiante, encontrava outra pessoa que se alegrava com vê-lo tão rijo e robusto, concordava também:

— Oh! agora passo perfeitamente.

Não se opunha às opiniões dos outros; e ganhava com isto duas vantagens. A primeira era satisfazer a todos, a segunda era não perder tempo.

Pois, senhores, nem o ilustre brasileiro, nem este criado do leitor, éramos os mais precavidos dos homens. Há dias, a gente que saia de uma conferência republicana, foi atacada por alguns indivíduos: naturalmente houve tumulto, pancadas, pedradas, ferimentos. recorrendo os atacados aos apitos, para chamar a polícia, que acudiu prestes. Pouco antes, dois soldados brigaram com o cocheiro ou condutor de um bond, atracaram-se com ele, os passageiros intervieram, e, não conseguindo nada, recorreram aos apitos. e a polícia acudiu.

Estes apitos retinem-me ainda agora no cérebro. Por Ulisses! pelo artificioso e prudente Ulisses — Nunca imaginei que toda a gente andasse aparelhada desse instrumento, na verdade útil. Os casos acima apontados são diferentes, as circunstâncias diferentes, e diferentes os sentimentos das pessoas; não há uma só analogia entre os dois tumultos, exceto esta: que cada cidadão trazia um apito no bolso .É o que eu não sabia. Afigura-se-me ver um pacato dono da casa, prestes a sair, gritar para a mulher:

— Florência. esqueci-me da carteira, dá cá, está em cima da secretária, ou então:

—Florência, vê se há charutos na caixa, e atira-me alguns, ou ainda:

—Dá-me um lenço, Florência!

Mas nunca imaginei esta frase:

—Florência, depressa, dá cá o apito!

Não há negá-lo, o apito é de uso geral e comum uso louvável, porque a polícia não há de adivinhar os tumultos, e este modo de a chamar é excelente, em vez das pernas, que podem levar o dono não ao corpo da guarda, mas a um escuro e modesto corredor. Vou comprar um apito.

Creiam que é por medo dele, que não

Escrevo aqui duas linhas em defesa

De em defunto dos últimos dias, o

Carrasco de Minas Gerais, pobre-diabo,

que ninguém defendeu, e que uma carta

de Ouro Preto disse haver exercido o seu desprezível ofício desde 1835 até 1858.

Fiquei embatucado com o desprezível ofício do homem. Por que carga d’água há de ser desprezível ofício criado por lei? Foi a lei que decretou a pena de morte; e, desde Caim até hoje, para matar alguém de morte para o assassino, em vez de uma razoável compensação pecuniária aos parentes do morto, como queria Maomé. Para executar a pena não de há de ir buscar

O escrivão, cujos dedos só se devem tingir no sangue do tinteiro. Usamos empregar outro criminoso.

Disse então a bela sociedade ao carrasco de Minas, com aquela bonomia, que só possuem os entes coletivos:- Você fez já um bom ensaio matando

Sua mulher; agora assente a mão em outras execuções e acabará fazendo obra perfeita. Não se importe com mesa e cama: dou-lhe tudo isso, e roupa lavada: é um funcionário do Estado".

Deus meu, não digo que o ofício seja dos mais honrosos; é muito inferior ao do meu engraxador de botas, que por nenhum caso chega a matar as próprias pulgas; mas se o carrasco sai a matar um homem, é porque o mandam. Se a comparação se não prestasse a interpretações sublimes, que estão longe da minha alma, eu diria que ele (carrasco) é a última palavra do código. Não seguem isto, ao menos, ao patife Januário,- ou Fortunato, como outros dizem.

Em todo caso, não apitem, porque eu ainda não comprei apito, e posso responder que tudo isto é brincadeira, para passar os tempos duros do verão.

Boas noites.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Machado de Assis - Cronicas - Notas Semanais 1878

Notas Semanais 1878

[13] [2 junho]

Á HERANÇAS onerosas. ELEAZAR substituiu SIC, cuja pena, aliás, lhe não deram, e conseguintemente não lhe deram os lavores de estilo, a graça ática, e aquele pico e sabor, que são a alma da crônica. A crônica não se contenta da boa vontade; não se contenta sequer do talento; é-lhe precisa uma aptidão especial e rara, que ninguém melhor possui, nem em maior grau, do que o meu eminente antecessor. Onerosa e perigosa é a herança; mas eu cedo à necessidade da ocasião.
Resta que me torne digno, não direi do aplauso, mas da tolerância dos leitores.

II
Um pouco dessa tolerância, bem podiam tê-la as comissões sanitárias, cuja locomoção me tem feito pensar nas três famosas passadas de Netuno. Vejamos um claro exemplo de intolerância e de outra coisa.
Descobriu uma de tais comissões que certa casa da rua tal, número tantos, vende água de Vidago e de Vichy, sem que as ditas águas venham efetivamente dos pontos designados nos anúncios e nos rótulos. As águas são fabricadas cá mesmo. A comissão entendeu obrigar a casa a dar um rótulo às garrafas, indicando o que as águas eram; e, não sendo obedecida, multou-a.
Há duas coisas no ato da comissão: ingenuidade e injustiça.
Com efeito, dizer a um cavalheiro que escreva nas suas águas de Vidago estas não são de Vidago, são do Beco dos Aflitos — é exigir mais do que pode dar a natureza humana. Suponho que a população do Rio de Janeiro morre por lebre, e que eu, não tendo lebre para lhe dar, lanço mão do gato, qual é o meu empenho? Um somente: dar-lhe gato por lebre. Ora, obrigar-me a pôr na vianda o próprio nome da vianda; ou, quando menos, a escrever-lhe em cima esta pergunta: onde está o gato? é supor-me uma simplicidade que exclui a beleza original do meu plano; é fechar-me a porta. Restar-me-ia, em tal caso, o único recurso de comparar a soma das multas com a soma dos ganhos, e se esta fosse superior, adotar o alvitre de fazer pagar as multas pelo público. O que seria fina flor da habilidade industrial.

Mas pior do que a ingenuidade, é a injustiça da comissão, e maior do que a injustiça é a sua inadvertência. A comissão multou a casa, Porque supõe a existência de fontes minerais em Vidago e em Vichy,quando é sabido que uma e outra das águas assim chamadas são puras combinações artificiais. Vão publicar-se as receitas. Acresce que as águas de que se trata nem são vendidas ao público. Há, na verdade, muitas pessoas que as vão buscar; mas as garrafas voltam intactas, à noite, e tornam a sair no dia seguinte, para entrar outra vez; é um jogo, um puro recreio, uma inocente diversão, denominada o jogo das águas, mais complicado que o jogo da bisca, e menos arriscado que o jogo da fortuna. A vizinhança, ao ver entrar e sair muita gente, está persuadida de que há grande venda do produto, — o que diverte infinitamente os parceiros, todos eles sócios do Clube dos Misantropos Reunidos.

III
Quanto a receitas, não serão aquelas as únicas impressas. O Cruzeiro anunciou que um dos nossos mais hábeis confeiteiros medita coligir todas as suas, em volume de mais de trezentas páginas, que dará à luz, oferecendo-o às senhoras brasileiras.
É fora de dúvida, que a literatura confeitológica sentia necessidade de mais um livro em que fossem compendiadas as novíssimas fórmulas inventadas pelo engenho humano para o fim de adoçar as amarguras deste vale de lágrimas. Tem barreiras a filosofia; a ciência política acha um limite na testa do capanga. Não está no mesmo caso a arte do arroz-doce, e acresce-lhe a vantagem de dispensar demonstrações e definições. Não se demonstra uma cocada, come-se. Comê-la é defini-la.
No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores do nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. Digamos todo o nosso pensamento: é uma restauração, é a restauração do nosso princípio social. O princípio social do Rio de Janeiro, como se sabe, é o doce de coco e a compota de marmelos. Não foi outra também a origem da nossa indústria doméstica. No século passado e no anterior, as damas, uma vez por ano, dançavam o minuete, ou viam ver correr argolinhas; mas todos os dias faziam renda e todas as semanas faziam doce- de modo que o bilro e o tacho, mais ainda do que os falcões pedreiros de Estácio de Sá, lançaram os alicerces da sociedade carioca.
Ora qual é nossa situação há dez ou quinze anos? Há dez ou quinze anos, penetrou nos nossos hábitos um corpo estranho, o bife cru. Esse anglicismo só tolerável a uns sujeitos, como os rapazes de Oxford, que alternam os estudos com regatas, e travam do remo com as mesmas mãos que folheiam Hesíodo, esse anglicismo, além de não quadrar ao estômago fluminense, repugna aos nossos costumes e origens. Não obstante, o bife cru entrou nos hábitos da terra; bife cru for ever, tal é a divisa da recente geração.
Embalde alguns fiéis cidadãos vão ao Castelões, às quatro horas da tarde, absorver duas ou três mães-bentas, excelente processo para abrir a vontade de jantar. Embalde um partido eclético se lança ao uso do pastel de carne com açúcar, conciliando assim, num só bocado, o jantar e a sobremesa. Embalde as confeitarias continuam a comemorar a morte de Jesus, na quinta-feira santa, armando-se das mais vermelhas sanefas, encarapitando os mais belos cartuchos de bon-bons, que em algum tempo se chamaram confeitos, recebendo enfim um povo ávido de misturar balas de chocolate com as lágrimas de Sião. Eram, e são esforços generosos; mas a corrução dos tempos não permite fazê-los gerar alguma coisa útil. A grande maioria acode às urgências do estômago com o sanduíche, não menos peregrino que o bife cru, e não menos sórdido; ou com o croquete, estrangeirize do mesmo quilate; e a decadência e a morte do doce parecem inevitáveis.
Nesta grave situação, anuncia-se o novo manual de confeitaria. Direi desde já que o merecimento do autor é inferior ao que se pensa. Sem dúvida, há algum mérito nesse cavalheiro, que vem desbancar certo sábio do século anterior. Dizia o sábio que se tivesse a mão cheia de verdades, nunca mais a abriria; o confeiteiro tem as mãos cheias de receitas, e abre-as, espalma-as, sacode-as aos quatro ventos do céu, como dizendo ao fregueses: — Habilitai-vos a fazer por vossas mãos a compota de araçá, em vez de a vir comprar à minha confeitaria. Vendo-vos este livro, para vos não vender mais coisa nenhuma; ou, se me permitis uma metáfora ao sabor do moderno gongorismo, abro-vos as portas dos meus tachos. Concorrentemente, auxilio o desenvolvimento das liberdades públicas, porquanto, alguns vos dirão que tendes o direito do jejum e o direito da indigestão: é apenas uma verdade abstrata. Eu congrego ambos os direitos sob a forma do bom-bocado: é uma verdade concreta. Abstende-vos ou abarrotai-vos; está ao alcance da vossa mão.
Não vai além o mérito do autor do novo manual. Sua iniciativa tem um lado inconsciente, que o constitui simplesmente fenômeno. Há certa ordem de fatos na vida dos povos, cujo princípio gerador está antes na lei histórica do que na deliberação do indivíduo. Aparentemente, é largo o abismo, entre um Confeiteiro Portátil e a última batalha de Pompeu, mas estudai em suas origens os dois produtos, e vereis que, se César desloca a base do poder político, põe por obra uma evolução da sociedade romana, — e se o nosso confeiteiro publica as suas trezentas páginas de receitas, obedece à necessidade de restaurar o princípio social do manuê. Naquele caso, a queda da república; neste, a proscrição do bife sangrento. Diferente meio; ação diversa; lei idêntica, análogo fenômeno; resultado igual.
Trata-se pois de nada menos que voltar ao regímen da sobremesa. Quando o Marechal López, nas últimas convulsões de seu estéril despotismo, soltava esta frase célebre: il faut finir pour commencer, indicava às nossas confeitarias, ainda que de modo obscuro, a verdadeira teoria gastronômica. Com efeito, importa muito que a sobremesa tenha o primeiro lugar; acrescendo que começar uma coisa pelo fim, pode não ser o melhor modo de a acabar bem, mas é com certeza, o melhor modo de a acabar depressa. Vejam, por exemplo, as conseqüências que pode ter este princípio da sobremesa antes da sopa aplicado à organização dos Estados. A Banda Oriental do Uruguai, apenas se sentou à mesa das nações, ingeriu no estômago um cartucho de pralinas constitucionais, abarrotou-se, e nem por isso teve indigestão, ao contrário, digeriu todas as pralinas em poucos anos; digeriu mais uns quinhentos quilos de governos à la minute; mais uns dez ou dez pires de congressos em calda; viveu, enfim, numa completa marmelada política. É verdade que o estômago lhe adoeceu, e que a puseram no regímen de uns caldos substanciais à Latorre, para combater a dispepsia republicana; mas é também verdade que, se não acabou bem, acabou depressa.

IV
Não acabou menos depressa o paço municipal de Macacu, que aliás acabou mais radicalmente; ardeu. Sobre as causas do desastre perde-se a imaginação em conjeturas, sendo a mais verossímil de todas a da combustão espontânea. Se não foi isso, foi talvez o mau costume que têm todos os paços municipais de dormirem com luz e lerem até alta madrugada. O de Macacu parece que até fumava na cama. Imprudência que se não combina com a madureza própria de um paço municipal.
Seja como for, há de ser muito difícil achar agora os papéis do município, e fica truncada a história de Macacu. Também a história é tão loureira, tão disposta a dizer o sim e o não, que o melhor que pode acontecer a uma cidade, a uma vila, a uma povoação qualquer, é não a ter absolutamente, e para isso a maior fortuna seria aplicar o niilismo aos documentos. Entreguemos os sábios vindouros ao simples recurso da conjetura; aplicação higiênica, algo fantástica, e sobretudo pacífica.
Não sei se o paço municipal estaria seguro em alguma companhia. Pode ser que não. Eu inclino-me a crer que devíamos segurar tudo, até as casacas, sobretudo as carteiras e algumas vezes o juízo. Um paço municipal entra no número das primeiras: é a casaca do município. Se a de Macacu já estava sebenta, não era isso razão para que o município fique agora em mangas de camisa; é mais fresco, mas muito menos grave.

V
Sucessos em terra, sucessos no mar. Voa um prédio; inaugura-se a linha de navegação entre este porto e o de New York. No fim de uma coisa que acaba, há outra que começa, e a morte paga com a vida: eterna idéia e velha verdade. Que monta? Ao cabo, só há verdades velhas, caiadas de novo.
O vapor é grande demais para estas colunas mínimas; há muita coisa que dizer dele, mas não é este o lugar idôneo. Tinha que ver se eu entrasse a dar à preguiça dos leitores um caldo suculento de reflexões, observações e conclusões, acerca da boa amizade entre este país e os Estados Unidos! Que o digam vozes próprias e cabais. Mais depressa lhes faiaria do fonógrafo, se o houvera escutado. O fonógrafo. . . creiam que agora é que trato de suster o vôo, porque estou a ver o fim da lauda, e o fonógrafo era capaz de levar-me até o fim da edição. Virá dia em que o faça com descanso.
Que os Estados Unidos começam de galantear-nos, é coisa fora de dúvida; correspondamos ao galanteio; flor por flor, olhadela por olhadela, apertão por apertão. Conjuguemos os nossos interesses, e um pouco também os nossos sentimentos; para este há um elo, a liberdade; para aqueles, há outro, que é o trabalho; e o que são o trabalho e a liberdade senão as duas grandes necessidades do homem? Com um e outro se conquistam a ciência, a prosperidade e a ventura pública. Esta nova linha de navegação afigura-se-me que não é uma simples linha de barcos. Já conhecemos melhor os Estados Unidos já eles começam a conhecer-nos melhor. Conheçamo-nos de todo, e o proveito será comum.

VI
E agora um traço negro. Registrou a semana um fato triste e consolador ao mesmo tempo. Morreu um homem, que era inteligente, ilustrado e laborioso; mas que era também um homem bom. Os qualificativos estão já tão gastos que dizer homem bom, parece que é não dizer nada. Mas quantos merecem rigorosamente esta qualificação tão simples e tão curta? O grande assombra, o glorioso ilumina, o intrépido arrebata; o bom não produz nenhum desses efeitos. Contudo, há uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez em ser simplesmente bom, sem aparato, nem interesse, nem cálculo; e sobretudo sem arrependimento.
Era-o o Dr. Dias da Cruz; e se a sua morte foi um caso triste, o seu saimento foi um caso consolador, porque essa virtude sem mácula pôde subir ao céu sem desgosto. levou as lágrimas dos olhos que enxugara.

[14] [16 junho] - "Os foguetes juninos e as leis "
I
ESTRUGIRAM OS últimos foguetes de Santo Antônio; não tarda chegar a vez de S. João e de S. Pedro. O último destes santos, com ser festivo, não o é tanto como os dois primeiros, nem, sobretudo, como o segundo. Deve-o talvez à sua qualidade especial de discípulo, e primaz dos discípulos. Não o era o Batista, aliás precursor e admoestador, e menos ainda o bem-aventurado de Pádua.
Indague quem quiser o motivo histórico deste foguetear os três santos, uso que herdamos dos nossos maiores; a realidade é que, não obstante o ceticismo do tempo, muita e muita dezena de anos há de correr, primeiro que o povo perca os seus antigos amores. Nestas noites abençoadas é que as crendices sãs abrem todas as velas. As consultas, as sortes, os ovos guardados em água, e outras sublimes ridicularias, ria-se delas quem quiser; eu vejo-as com respeito, com simpatia e se alguma coisa me molestam é por eu não as saber já praticar. Os anos que passam tiram à fé o que há nela pueril, para só lhe deixar o que há sério; e triste daquele a quem nem isso fica: esse perde o melhor das recordações.

II
Venhamos à boa prosa, que é o meu domínio. Vimos o lado poético dos foguetes; vejamos o lado legal.
Os dias passam, e os meses, e os anos, e as situações políticas, e as gerações e os sentimentos, e as idéias. Cada olimpíada traz nas mãos uma nova andaina do tempo. O tempo, que a tradição mitológica nos pinta com alvas barbas, é pelo contrário um eterno rapagão, rosado, gamenho, pueril; só parece velho àqueles que já o estão; em si mesmo traz a perpétua e versátil juventude.
Duas coisas, entretanto, perduram no meio da instabilidade universal: - 1.º a constância da polícia que todos os anos declara editalmente ser proibido queimar fogos, por ocasião das festas de S. João e seus comensais; 2º a disposição do povo em desobedecer às ordens da polícia. A proibição não é simples vontade do chefe; é uma postura municipal de 1856. Anualmente aparece o mesmo edital, escrito com os mesmos termos; o chefe rubrica essa chapa inofensiva, que é impressa, lida e desrespeitada. Da tenacidade com que a polícia proíbe, e da teimosia com que o povo infringe a proibição, fica um resíduo comum: o trecho impresso e os fogos queimados.
Se eu tivesse a honra de falar do alto de uma tribuna, não perdia esta ocasião de expor longa e prudhommescamente o princípio da soberania da nação, cujos delegados são os poderes públicos, diria que, se a nação transmitiu o direito de legislar, de judiciar, de administrar, não é muito que reservasse para si o de atacar uma carta de bichas; diria que, sendo a nação a fonte constitucional da vida politica, excede o limite máximo do atrevimento empecer-lhe o uso mais inofensivo do mundo, o uso do busca-pé. Levantando a discussão à altura da grande retórica, diria que o pior busca-pé não é o que verdadeiramente busca o pé, mas o que busca a liberdade, a propriedade, o sossego, todos esses pés morais (se assim me pudesse exprimir), que nem sempre sóem caminhar tranqüilos na estrada social; diria, enfim, que as girândolas criminosas não são as que ardem em honra de um santo , mas as que se queimam para glorificação dos grandes crimes.
Que tal? Infelizmente não disponho de tribuna, sou apenas um pobre-diabo, condenado ao lado prático das coisas; de mais a mais míope, cabeçudo e prosaico. Daí vem que, enquanto um homem de outro porte vê no busca-pé uma simples beleza constitucional, eu vejo nele um argumento mais em favor da minha tese, a saber, que o leitor nasceu com a bossa da ilegalidade. Note que não me refiro aos sobrinhos do leitor, nem a seus compadres, nem a seus amigos; mas tão-somente ao próprio leitor. Todos os demais cidadãos ficam isentos da mácula se a há.
Que um urbano, excedendo o limite legal das suas atribuições, se lembre de pôr em contacto a sua espada com as costas do leitor, é fora de dúvida que o dito leitor bradará contra esse abuso do poder; fará gemer os prelos; mostrará a lei maltratada na sua pessoa. Não menos certo é que, assinado o protesto, irá com a mesma mão acender uma pistola de lágrimas; e se outro urbano vier mostrar-lhe polidamente o edital do chefe, o referido leitor aconselhar-lhe-á que o vá ler à família, que o empregue em cartuchos, que lhe não estafe a paciência. Tal é a nossa concepção da legalidade; um guarda-chuva escasso, que não dando para cobrir a todas as pessoas, apenas pode cobrir as nossas; noutros termos, um pau de dois bicos.
Agora, o que o leitor não compreende é que esse urbano excessivo no uso das suas atribuições, esse subalterno que transgride as barreiras da lei, é simplesmente um produto do próprio leitor; não compreende que o agregado nada mais representa do que as somas das unidades, com suas tendências, virtudes e lacunas. O leitor (perdoe a sua ausência) é um estimável cavalheiro, patriota, resoluto, manso, mas persuadido de que as coisas públicas andam mal, ao passo que as coisas particulares andam bem; sem advertir que, a ser exata a primeira parte, a segunda forçosamente não o é; e, a sê-lo a segunda, não o é a primeira. Um pouco mais de atenção daria ao leitor um pouco mais de eqüidade.
Mas é tempo de deixar as cartas de bichas.

III

Uns devotos riem, enquanto outros devotos choram.
A providência, em seus inescrutáveis desígnios, tinha assentado dar a esta cidade um benefício grande; e nenhum lhe pareceu maior nem melhor do que certo gozo superfino, espiritual e grave, que patenteasse a brandura dos nossos costumes e a graça das nossas maneiras: deu-nos os touros.
Talvez poucas pessoas se lembrem que há bons vinte e cinco anos ou mais, creio que mais, houve uma tentativa de tauromaquia nesta cidade. A tentativa durou pouco. Uma civilização imberbe não tolera melhoramentos de certo porte. Cada fruto tem a sua sazão. O circo desapareceu, mas a semente ficou, e germinou, e brotou e cresceu, e fez-se a magnífica árvore, a cuja sombra se pode hoje estirar a nossa filosofia.
Na verdade, os prazeres intelectuais hão de sempre dominar nesta geração. Atualmente, é sabido que o teatro, copioso, elevado, profundo, puro Sófocles, tem enriquecido quarenta e tantas empresas, ao passo que só quebram as que recorrem às mágicas. Ninguém ainda esqueceu os ferimentos, as rusgas, os apertões que houve por ocasião da primeira récita do Jesuíta, cuja concorrência de espectadores foi tamanha, que o empresário do teatro comprou, um ano depois, o palácio Friburgo.
Faltavam-nos os touros. Os touros vieram, e com eles toda a fraseologia, a nova, a elegante, a longa fraseologia tauromáquica; enfim, veio o bandarilheiro Pontes. Não tive a honra de ver este cavalheiro, que os doutores da instituição proclamam artista de alta escala; mas ele pertence ao número das coisas, em que eu creio sem ver, digo mais, das coisas, em que eu tanto mais creio, quando menos avisto. Porque é de saber que, em relação a essa nobre diversão do espírito, eu sou nada menos que um patarata; nunca vi corridas de touros provavelmente, não as verei jamais. Não é que me falte incentivo. Em primeiro lugar, possuo um amigo, espírito delicado, que as adora e freqüenta; depois, sempre me há de lembrar Santo Agostinho. Conta o grande bispo que o seu amigo Alípio, seduzido a voltar ao anfiteatro, ali foi de olhos fechados, resoluto a não os abrir; mas o clamor das turbas e a curiosidade os abriram de novo e de uma vez, tão certo é que esses espetáculos de sangue alguma coisa têm que fascinam e arrastam o homem. Pode ser que algum dia também eu vá atirar lenços e charutos aos pés de algum bandarilheiro célebre; pode ser...
Por hora, não estou entre os inconsoláveis admiradores do Pontes que lá se vai, mar em fora. Perdão, do artista Pontes. Sejamos do nosso século e da nossa língua. No tempo em que uma vã teoria regulava as coisas do espírito, estes nomes de artista e de arte tinham restrito emprego: exprimiam certa aplicação de certas faculdades. Mas as línguas e os costumes modificam-se com as instituições. Num regímen menos exclusivo, essencialmente democrático, a arte teve de vulgarizar-se: é a subdivisão da moeda de Licurgo. Cada um possui com que beber um trago. Daí vem que farpear um touro ou esculpir o Moisés é o mesmo fato intelectual: só difere a matéria e o instrumento. Intrinsecamente, é a mesma coisa. Tempo virá em que um artista nos sirva a sopa de legumes, e outro artista nos leve, em tílburi, à fábrica do gás.

IV
Nesse tempo não viverá, decerto, um pobre velho que veio ontem lançar-se a meus pés. Mandei-o levantar, consolei-o, dei-lhes alguma coisa - um níquel - e ofereci-lhe o meu valimento, se dele necessitasse.
- Agradeço os bons desejos, disse ele; mas todos os esforços serão inúteis. Minha desgraça não tem remédio. Um bárbaro ministro reduziu-me a este estado, sem atenção aos meus serviços, sem reparar que sou pai de família e votante circunspecto; e se o fez sem escrúpulo, é porque o fez sem nenhuma veleidade de emendar a mão. Arrancou-me o pão, o arrimo, o pecúlio de meus netos, enfim, matou-me. Saiba que sou o arsenal de marinha. O ministro tirou-me as bandeiras, sob pretexto de que eu exigia um preço excessivamente elevado, como se a bandeira da nação, esse estandarte glorioso que os nossos bravos fincaram em Humaitá, pudesse decentemente custar 7$804, ainda sendo de dois panos! Era caro o meu preço, é possível; mas o pundonor nacional, não vale alguma coisa o pundonor nacional? O ministro não atendeu a essa grave razão, não atendeu ao decoro público. Tirou-me as bandeiras. Não tente nada, em meu favor, que perde o tempo; deixe-me entregue à minha desgraça. Esta nação não tem ideal, meu senhor; não tem coisa nenhuma. O pendão auriverde, o nobre pendão, custa menos do que um chapéu-de-sol, menos do que uma dúzia de lenços de tabaco; sete mil e tanto: é o opróbrio dos opróbrios.

Não menor opróbrio para a ciência foi a prisão de Miroli e Locatelli. Descanse a leitora; não se trata de nenhum tenor nem soprano, subtraído às futuras delícias da fashion. Não se trata de dois canários; trata-se de dois melros.
Não é melro quem quer. O primeiro daqueles merece dois dedos de admiração. Sucessivamente médico, domador de feras, volantim, mestre de dança, e ultimamente adivinho, não se pode dizer que seja homem vulgar; é um fura-vidas, que se atira à strugh for life com unhas e dentes, sobretudo com unhas. De unhas dadas com a dama Locatelli, fundou uma Delfos na Rua do Espírito Santo, e entrou a predizer as coisas futuras, a descobrir as coisas perdidas, e a farejar as coisas vedadas. O processo era o sonambulismo ou o espiritismo. Os crédulos, que já no tempo da Escritura eram a maioria do gênero humano, acudiram às lições de tão ilustre par, até que a polícia o convidou a ir meditar nos destinos de Galileu e outras vítimas da autoridade pública.
Pior que tudo é que, se a polícia os castiga neste mundo, o demo os castigará no outro; e aqui chamo eu a atenção do leitor para a estrita realidade da poesia. O famoso casal ficou neste mundo de cara à banda, como há de ficar no outro, segundo a versão dantesca; lá aos adivinhos como Miroli, torcem o nariz para trás, e os olhos choram-lhes pelas costas:

........... che'l pianto degli occhi
Le natiche bagnava per lo ferro.

VI
Anuncia-se um congresso agrícola, um congresso oficial, presidido pelo Ministro da Agricultura, reunião que não tratará de coronéis, nem de eleições, mas de lavoura, de máquinas e de braços. A crônica menciona o fato com prazer; e atreve-se a manifestar o desejo de que seja imitado em análogas circunstâncias. A administração não perde nunca, antes ganha, quando entra em contacto com as forças vivas da nação, ouvir diretamente uma classe é o melhor caminho para conhecer as necessidades dela e provê-la de modo útil.
Só poderia haver um receio é que os interessados não acudissem todos ao convite. Mas além de ser gratuito supor que o doente se esquive a narrar o mal, podemos contar com o elemento paulista, que há de ser talvez o mais numeroso. Não é menos importante a lavoura fluminense, nem a das outras províncias convocadas; mas os homens que as dirigem são mais sedentários; falta-lhes um pouco de atividade bandeirante. Agora, porém, corre-lhes o dever de se desmentirem a si próprios.
Venhamos à política prática, útil, progressiva; metamos na alcofa os trechos de retórica, as frases-feitas, todos os fardões da grande gala eleitoral. Não digo que os queimemos, demo-lhes somente algum descanso. Encaremos os problemas que nos cercam e pedem solução. Liberais e conservadores de Campinas, de Araruama, de Juiz de Fora, batei-vos nas eleições de agosto com ardor, com tenacidade; mas por alguns dias, ao menos, lembrai-vos que sois lavradores, isto é, colaboradores de uma natureza forte, imparcial e céptica.

[15] [7 julho]

I
HOJE É DIA de festa cá em casa, recebo Luculo à minha mesa. Como o jantar do costume é rústico e parco, sem os requintes do gosto nem a abundância da gula, entendi que, por melhor agasalhar o hóspede, devia imitar o avaro de uma velha farsa portuguesa: mandar deitar ao caldeirão "mais uns cinco réis de espinafres". Noutros termos, enfunar um pouco o estilo. Não foi preciso; Luculo traz consigo os faisões, os tordos, os figos, os licores, e as finas toalhas, e os vasos murrinos, o luxo todo, em suma, de um homem de gosto e de dinheiro.
É o caso que tenho diante de mim o relatório do diretor das escolas normais de uma das nossas províncias, cujo nome, aliás, não digo, por não ofender a modéstia daquele cavalheiro. Não havia nada que saborear num relatório, se o de que trato fosse parecido com os outros, seus anteriores e contemporâneos. Mas não; o distinto funcionário entendeu, e entendeu muito bem, que lhe cumpria temperar o estilo oficial com algumas especiarias literárias. Na verdade, o estilo oficial ou administrativo é pesado e seco, e o tipo geral dos relatórios poderíamos figurá-lo bem em um sujeito pautado, gravata de sete voltas, casacão até os pés, bota inglesa, sobraçando um guarda-chuva de família. Não foi esse o modelo do diretor das escolas normais. Escritor ameno, imaginoso, erudito, deu um pouco mais de vida ao tipo clássico, atou-lhe ao pescoço um lenço azul, trocou-lhe o casacão em fraque, substituiu-lhe o guarda-chuva por uma bengala de Petrópolis. Ao peito pôs-lhe uma rosa fresca. Talvez não agrade tanto aos pés-de-boi da administração: não faltará quem lhe ache um ar pelintra, nos ademanes de petit crevé. É natural, e até necessário. Nenhuma reforma se fez útil e definitiva sem padecer primeiro as resistências da tradição, a coligação da rotina, da preguiça e da incapacidade. É o batismo das boas idéias; é ao mesmo tempo o seu purgatório.
Isto dito, intercalarei nesta crônica de hoje algumas boas amostras do documento de que trato, impresso com outros submetidos ao presidente, e para em tudo conservar o estilo figurado das primeiras linhas, e porque o folhetim requer um ar brincão e galhofeiro, ainda tratando de coisas sérias, darei a cada uma de tais amostras o nome de um prato fino e especial, - um extra, como dizem as listas dos restaurants.
Sirvamos o primeiro prato.

LÍNGUAS DE ROUXINOL
Vassalo das normas legais e regulamentares, tenho a honra de vir, tirando forças da minha fraqueza, cumprir esse meu embargoso dever, depondo nas amestradas mãos de V. Ex.a, pelo ilustre veículo, que me é prescrito (a laureada diretoria de instrução pública), o fruto desenvolvido das emendas do meu secretário, esse tributo obediencial, que compete a V. Ex.a .
... assim, pois, com a paciência com que a misericórdia sói acompanhar a justiça, em sua marcha salutar , espero V.Ex.a, para compreender-me, me siga pelos andurriais por onde, perdido de monte em monte, serei forçado a peregrinar.

II
Não há patinação, não há corridas de cavalos, não há nada que nestes dias possa dominar o sucesso máximo, o sujeito que em Caravelas, na Bahia, deu à luz uma criança. Quando eu era pequeno, ouvia dizer que o galo, chegando à velhice, punha ovos, como as galinhas; não o averigüei mais tarde, mas já agora devo crer que o conto não era da carocha, senão pura e real verdade.
O sujeito de Caravelas é um quadragenário, que tinha cor de icterícia, e padecia há muito uma forte opressão no peito. Ultimamente, di-lo o médico, sentiu uma dor agudíssima na região precordial, movimentos desordenados do coração, dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança, porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures, trechos soltos da infeliz criatura, que não chegou a viver.
A mitologia deu-nos um Baco meio gerado na coxa de Júpiter; e da cabeça deste fez nascer Minerva armada. Eram fábulas naquele tempo; hoje devemos tê-las por simples realidade, e, quando menos, um prenúncio do nosso patrício. Assim o creio e proclamo. E porque não suponho que o caso de Caravelas deve ser o único, acontece-me que não posso ver agora nenhum amigo, opresso e pálido, sem supor que me vai cair nos braços, a bradar com um grito angustioso: "Eleazar, sou mãe!". Esta palavra retine-me aos ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o que será de nós, se tivermos de dar à luz os nossos livros e os nossos pequenos; gerar herdeiros e conspirações;conceber um plano de campanha e Bonaparte.
Imaginem...
COXINHAS DE ROLA
Digitus Dei. As feridas abertas em minha alma precisavam do doce lenitivo desse bálsamo metafísico, superior em propriedades aglutinadoras aos mais afamados de Fioravanti.

III

Dize-me se patinas, dir-te-ei quem és. Tal será dentro de pouco tempo o mote da suprema elegância. As corridas de cavalos correriam o risco de ficar por baixo, e até perecer de todo, se não fora a poule, tempero acomodado ao homem em geral, e ao fluminense em particular. Digo fluminense, porque essa variedade do gênero humano é educada especialmente entre a loteria e as sortes de S. João: e a poule dá as comoções de ambas as coisas, com o acréscimo de fazer com que um homem ponha toda a alma nas unhas do cavalo. Não é nas unhas do cavalo que havemos de pô-la quando formos ao Skating-rink, mas nas próprias unhas, ou melhor dito, nos patins que as substituem. No Prado Fluminense a gente faz correr o seu dinheiro nas ancas do quadrúpede, e por mais que se identifique com este, o amor-próprio só pode receber alguns arranhões, mais ou menos leves. Na patinação, a queda orça pelo ridículo, e cada sorriso equivale a uma surriada. Sem contar que não se arrisca somente o amor-próprio, mas também o pêlo, que não é menos próprio, nem menos digno do nosso amor.

E daí, não sei por que não se há de introduzir a poule na patinação. É um travozinho de pimenta. Aposta-se no vestido azul e no chapéu de escumilha, e perde o último que chegar ou o primeiro que cair. Será mais um campo de rivalidade entre os vestidos e os chapéus... os chapéus de escumilha, entenda-se.
Quanto à Emília Rosa... Interrompamo-nos; chega outro pratinho.
PEITO DE PERDIZ À MILANESA
Não passarei adiante , sem lembrar a V . Ex.a . a que a nova organização dada ao curso pelo último dos regulamentos, tendo feito passar disciplinas do 2o para o 1o ano, e vice-versa, obrigou os normalistas que iam concluir seu tirocínio a freqüentarem em comum com os que o começavam, as aulas dessas disciplinas transplantadas, fazendo destarte o que em linguagem coreográfica se chama laisser croiser.

IV
Emília Rosa é uma senhora, vinda da Europa, com a nota secreta de que trazia um contrabando de notas falsas. Rien n'est sacré pour un sapeur; nem as malas do belo sexo, nem as algibeiras, nem as ligas. A polícia, com a denúncia em mão, tratou de examinar o caso. Desconfiar com mulheres! O Tolentino contou o caso de uma que dissimulou um colchão no toucador. Onde entra um colchão, podem entrar vinte, trinta, cinqüenta contos. A polícia esmiuçou o negócio como pôde e lhe cumpria, esteve a ponto de fazer cantar a passageira, a ver se lhe encontrava as notas falsas na garganta. Afinal, a denúncia das notas era tão verdadeira como a notícia das cabeças a prêmio, em Macaúbas, onde parece que apenas há um mote a prêmio, e nada mais: o mote eleitoral.
Trata-se, não de notas falsas, mas de salames verdadeiros, ou quaisquer outros comestíveis, que a passageira trazia efetivamente por contrabando. A diferença entre um paio e um bilhete do banco é enorme, posto que às vezes os bilhetes do banco andem nas algibeiras dos "paios", donde passam para o toucador das senhoritas. Valha-nos isso; podemos dormir confiados na honestidade das nossas carteiras.
Isto de notas falsas, libras falsas, e letras falsas, creio que tudo vai entroncar-se numa palavra de Guizot: Enriquecei! palavra sinistra, se não é acompanhada de alguma coisa que a tempere. Enriquecer é bom; mas há de ser a passo de boi, quando muito a passo de carroça d'água. Não é esse o desejo das impaciências, que nos dão libras de metal amarelo; o passo que as seduz é o dos cavalos do Prado,- o da Mobilisée, que se esfalfa para chegar a raia. Vejam o Secret, seu astuto competidor. Esse deixa-se ficar; não se fatiga, à toa, imagem do ambicioso de boa têmpera, que sabe esperar. Talvez por isso o desligaram da Mobilisée, nas corridas de hoje. Esta radical não quer emparelhar com aquele oportunista.
Sinto um cheiro delicioso...
FAISÃO ASSADO
Declaro a V. Ex.a algum tanto aflato de amor-próprio, que nenhum fato agraz perturbou durante o ano letivo a disciplina e boa ordem dos dois estabelecimentos a meu cargo. Diretor, professores, alunos e porteiros, todos souberam respeitar-se mutuamente. V. Ex.a não ignora que o respeito é a base da amizade.
Como Cícero, sou um dos mais ardentes apologistas da lei natural, da eqüidade; como ele, entendo que a lei é a equidade;- a razão suprema gravada em nossa natureza, inscrita em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz nos traça nossos deveres, de que o Senado não nos pode desligar, e cujo império se estende a todos os povos; lei que só Deus concebera, discutira e publicara.
Partindo deste cantinho das minhas crenças, proponho a V. Ex.a que faça submeter o Sr. professor do 1.o ano a exame de uma junta médica...
Se achares três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco. Esta máxima, que eu dou de graça ao leitor, não é a do cavalheiro, que nesta semana restituiu fielmente dois contos e setecentos mil-réis à Caixa da Amortização; fato comezinho e sem valor, se vivêssemos antes do dilúvio, mas digno de nota desde que o dilúvio já lá vai. Não menos digno de nota é o caso do homem que, depois de subtrair uma salva de prata , foi restituí-lo ao ourives , seu dono. Direi até que este fica mais perto do céu do que o primeiro, se é certo que há lá mais alegria por um arrependimento do que por um imaculado.
Façam de conta que este último rasgo de virtude são uns óculos de cor azul para melhor encararmos a tragédia dos Viriatos. Hão de ter lido que esses malfeitores entrincheiraram-se em uma vila cearense, aonde o governo foi obrigado a mandar uma força de 240 praças de linha, que a investiram à escala vista; muito fogo, mortos, feridos; prisão de alguns, fuga dos restantes. Há revoluções na Bolívia que não apresentam maior número de gente em campo; digo de gente, sem me referir aos generais. Pobre Ceará! Além da seca os ladrões de estrada.
Está-me a cair da pena um rosário de reflexões acerca da generalidade e da coronelite, dois fenômenos de uma terrível castelhana; mas iria longe...
Prefiro servir-lhes uns pastelinhos.

PASTELINHOS
A hipocrisia não tem um leito de flores no regaço da minha alma.
Sempre as finanças da província!... eterno clarão das almas timoratas!
As finanças e sempre as finanças, esse hipogrifo que...
... preferirá ver lacradas as portas das escolas primárias a ver sentados nas espinhosas cadeiras do magistério indivíduos cujos corações não foram cuidadosamente arroteados, antes de lhes acenderem almenaras em suas cabeças
...o mestre, esse grande Davi da lira psíquica da infancia...

VI
Parece que o Primo Basílio, transportado ao teatro, não correspondeu ao que legitimamente se esperava do sucesso do livro e do talento do Sr. Dr. Cardoso de Meneses. Era visto: em primeiro lugar, porque em geral as obras, geradas originalmente sob uma forma, dificilmente toleram outra; depois, porque as qualidades do livro do Sr. Eça de Queirós e do talento deste, aliás fortes, são as mais avessas ao teatro. O robusto Balzac, com quem se há comparado o Sr. Eça de Queirós, fez má figura no teatro, onde apenas se salvará o Mercadet; ninguém que conheça mediocremente a história literária do nosso tempo, ignora o monumental desastre de Quinola.
Se o mau êxito cênico do Primo Basilio nada prova contra o livro e o autor do drama, é positivo também que nada prova contra a escola realista e seus sectários. Não há motivo para tristezas nem desapontamentos; a obra original fica isenta do efeito teatral; e os realistas podem continuar na doce convicção de que a última palavra da estética é suprimi-la. Outra convicção, igualmente doce, é que todo o movimento literário do mundo está contido nos nossos livros; daí resulta a forte persuasão em que se acham de que o realismo triunfa no universo inteiro; e que toda a gente jura por Zola e Baudelaire. Este último nome é um dos feitiços da nova e nossa igreja; e, entretanto,sem desconhecer o belo talento do poeta, ninguém em França o colocou ao pé dos grandes poetas; e toda a gente continua a deliciar-se nas estrofes de Musset, e a preferir L'Espoir en Dieu a Charogne. Caprichos de gente velha.

COMPOTA DE MARMELOS

Era assim preciso; os recursos do regulamento isolavam, não atraíam. Mais tarde, entendo-me particularmente com os deputados, deram-me eles duas pequenas maçanetas para embutir nas portas das escolas; o § 8.o do art. 1.o da resolução n.o 1.079, e o § 8.o do referido artigo.
... a instituição que, devidamente reparada da terrível exaustão da vida que tem sofrido desde o seu primeiro instante, pode se dizer sem medo de errar, é o palácio da grandeza moral e da opulência material da pequena província que, em face do velho Atlântico, embriagada de perfumes, circundada de luzes, ergue para Deus, donde há de vir sua prosperidade, os olhos prenhes de esperança.

VII
Reúne-se amanhã o congresso agrícola; e folgo de crer que dará resultados úteis e práticos. Conhecida a nossa índole caseira, a tal ou qual inércia de espírito, que é menos um fenômeno da raça, que da idade social, a afluência dos lavradores parece exceder à expectação. A obra será completa, se todos puserem ombros à empresa comurn.

BRINDE FINAL

Aqui tenho a honra de concluir, fazendo votos para que, afeiçoando as idéias que, não edulcoradas para perderem o ressábio da origem, aí ficam mal expostas, digne-se tirar-lhes os ácidos...

VIII
Mas eu seria injusto, se não fechasse estas linhas notando um ato benemérito do digno diretor, que o confessa no relatório, tem auxiliado com dinheiro seu a matrícula de estudantes. Vê-se que é um entusiasta da pedagogia; e, se lhe recusarem o estilo, não lhe dão de recusar a dedicação. Há muitos estilos para relatar; há só um para merecer.
[16] [21 julho]

I

UM RECENTE livro estrangeiro, relativo ao nosso Brasil, dá-me ensejo para dizer aos leitores que, se eu datei do Rio de Janeiro a minha última crônica, se faço o mesmo a esta e às futuras, é porque esse é o nome histórico, oficial, público e doméstico da boa cidade que me viu nascer, e me verá morrer, se Deus me der vida e saúde. O viajante estrangeiro, referindo-se ao erro que deu lugar ao nome desta cidade, admira-se de que haja sido conservado tão religiosamente, sendo tão simples emendá-lo. Que diria ele, se pudesse compreender a carência de eufonia de um nome tão áspero, tão surdo, tão comprido? Infelizmente,- e nesta parte engana-se o viajante,- o costume secular e a sanção do mundo consagraram de tal modo este nome, que seria bem árduo trocá-lo por outro, e bem audaz quem o propusesse seriamente.
Pela minha parte, folgaria muito se pudesse datar estas crônicas de Guanabara, por exemplo, nome simples, eufônico, e de algum modo histórico, espécie de vínculo entre os primeiros povoadores da região e seus atuais herdeiros. Guanabara tem, é certo, o pecado de cheirar a poesia, de ter sido estafado nos octossílabos que o Romantismo expectorou entre 1844 e l853; mas um banho de boa prosa limpava-o desse bolor, enrijava-lhe os músculos, punha-o capaz de resistir a cinco séculos de uso quotidiano. O ponto era acostumar-se a gente a lê-lo com solenidade, num título cientifico ou num edital de arrematação; porque o costume, leitor amigo, é metade da natureza. Só o uso do ouvido nos faz suportáveis ou indiferentes a baba-de-moça e o coco-de-catarro.

II
Ou Guanabara ou Rio de Janeiro, a cidade está ainda hoje debaixo de uma grande impressão de espanto, por motivo de um caso extraordinário, la chose la plus extraordinaire et la plus commune, la plus grande et la plus petite,- para usar a linguagem da mulher que mais se carteou, desde que há mulheres e cartas.
Com efeito, o anão da Libéria deu uma canivetada no contrato, deixando-se raptar, como qualquer sabina. Ou inclinação pessoal, ou capricho, ou simples rebelião das potências da alma, qualquer que fosse o motivo secreto da ação, o fato é que o homúnculo mostrou de modo afirmativo que um filho da Libéria deve amar, antes de tudo, a liberdade. Questão de cor local. Entendeu o anão, Sir Nathan Burraw, que o fato de não ter braços não lhe tira a qualidade de homem, a qual reside simplesmente nas barbas, que o dito anão espera vir a ter em tempo idôneo, e sabe lá, se barbas azuis, como as do marido de sete mulheres. Por enquanto, não muda de mulheres, mas de contratantes, e, preço por preço, inclina-se aos minas, que são seus malungos. Podemos dizer que é alma de Bruto no corpo de Calibã.
Agora, como se operou o rapto, é o que até hoje ninguém sabe. Dizem uns que ele foi arrebatado como uma simples ilha de Chipre, mediante um tratado secreto; e há quem queira ver no ato dos pretos minas uma imitação do velho Disraeli. É exageração; o mais que eu poderia admitir seria um pequeno reflexo. Outros dizem que não houve tratado, mas escada de seda, como num rapto de ópera-cômica.Qualquer que fosse o modo, a verdade é que com o empresário do anão, deu-se o inverso do que usualmente acontece. Há homens que deixam o ofício; aqui foi o ofício que deixou o homem. Vejam que triste exemplo deu a Pati! Todas as galinhas dos ovos de ouro querem agora pôr os ovos para si. No fundo deste incidente há uma questão social.

III
Mal convalescia o espírito público do abalo que lhe causou a notícia do rapto, surdiu o caso das coletorias de Minas, apostadas em roer algumas aparas do orçamento, caso triste, por qualquer lado que o encaremos, e sobre o qual pertence a palavra à autoridade pública.
Concorrentemente, quatro coletores da província do Rio de Janeiro deixaram as casas por motivo de lacuna nos cofres. Enfim, um empregado de uma casa desta corte, indo levar ao Tesouro certa quantia - 20 contos - desapareceu com eles.
Quanto a esta notícia, é incompleta. O negociante, estando ontem a almoçar, recebeu vinte cartões de visita, eram os 20 contos que voltavam por seu pé. Um dos contos referia-lhe então que o caixeiro, ao chegar à rua, os convidara a entrar no tesouro, ao que se opuseram 5 contos, e logo depois os restantes. Não querendo acompanhar o empregado, apesar dos mais incríveis esforços, este os deixou sozinhos, no meio de uma rua, que supõem ser a Ladeira do Escorrega, sítio nefasto aos contos. Então um deles propôs que voltassem para casa; teve a proposta 15 contos a favor e 5 contra, os mesmos 5, que primeiro se tinham oposto à entrada no Tesouro, os quais declararam que eram livres, em face dos princípios da revolução de 89.
O comerciante ouviu comovido esta narração dos acontecimentos, apertou as mãos de todos os contos e protestou sua adesão aos princípios de 89; acrescentando que, se haviam procedido mal, recusando entrar no Tesouro, tinham expiado a culpa, regressando voluntariamente ao casal paterno, donde aliás deviam seguir amanhã para o primeiro destino.
- Nunca! bradou um dos contos.
E sacando uma pistola, suicidou-se. Foi sepultado ontem mesmo. Um regimento de quatrocentos mil-réis a cavalo prestou as últimas honras ao infeliz suicida.

IV "A Carta do Tesouro "

Saibam, agora, que a Câmara resolveu autorizar o tesoureiro a comprar uma arca forte para recolher nela as suas rendas. Cáspite! Esta notícia derruba todas as minhas idéias acerca das rendas do município. A primeira convicção política incutida em meu espírito foi que o município não tinha recursos, e que por esse motivo andava descalçado, ou devia o calçado; convicção que me acompanhou até hoje. A frase - escassez das rendas municipais - há muito tempo que nenhum tipógrafo a compõe; está já estereotipada e pronta, para entrar no período competente, quando alguém articula as suas idéas acerca dos negócios locais. Imaginei sempre que todas as rendas da Câmara podiam caber na minha carteira, que é uma carteirinha de moça. Vai senão quando, a Câmara ordena que se lhe compre uma arca, e recomenda que seja forte, deita fora as suas muletas de mendiga, erige o corpo, como um Sisto V, e, como um primo Basílio tilinta as chaves da burra nas algibeiras. Diógenes batiza-se Creso; a cigarra virou formiga.



E notem que a riqueza da Câmara tende a crescer, à vista da proposta de um comerciante, que oferece ministrar todo o papel, apenas, tintas e mais artigos necessários às eleições (excluídas as cabeçadas), 30% menos do preço por que tais artigos têm sido fornecidos até hoje. Até hoje, quer dizer desde que há eleições, - o que não sei se abrange também os pelouros do antigo regímen. Se a Câmara lhe aceita a proposta, esse homem acaba estendendo a mão à caridade pública. Trinta por cento menos, é impossível que lhe não dê um prejuízo certo de outros quinze; salvo se os antecessores ganhavam demais.



V



Parece que se trata de organizar uma sociedade tauromáquica. Nada direi a tal respeito; os leitores conhecem as minhas idéias acerca da tauromarquia; idéias, digo mal; conhecem os meus sentimentos. Acho que é um dos mais belos espetáculos que se podem oferecer à contemplação do homem; e que uma sociedade já enfarada de tantas obras de arte, de um teatro superior, quase único, de tantas obras-primas do engenho humano, uma sociedade assim, precisa de um forte abalo muscular, precisa de repousar os olhos num espetáculo higiênico, deleitoso e instrutivo. Nem vejo motivo para que adotado o cavalo no Prado Fluminense, não se adote o boi em qualquer outro sítio. O boi não é tão épico nem tão elegante como o cavalo, mas tem outras qualidades próprias. Nem se trata do merecimento intrínseco dos dois quadrúpedes; trata-se da graça relativa dos dois divertimentos; e, a tal respeito, força é dizer que de um lado, o cavalo pleiteia com o cavalo, ao passo que de outro, o boi luta com o homem, - a força com a destreza, a inteligência com o instinto. Juntem a estes méritos a vantagem de enriquecer o vocabulário com uma chusma de expressões pitorescas, tais como a pega de cara, a pega de cernelha e outras, incluídas no novo método, e ver-se-á que a luta dos touros não é somenos à corrida de cavalos.



Para quem nada queria dizer, aí fica um período assaz longo e não menos entusiástico. Caiu da pena, e já agora não o risco, porque tenho pressa de chegar ao meu propósito, que é fazer uma barretada aos jesuítas. Já daqui estou a ver franzidas as sobrancelhas liberais do leitor, não mais liberais do que as minhas, que o são, e de bom cabelo; mas enfim, pode-se ser liberal e justo. Uma coisa implica a outra.



Que os espanhóis são doidos por touros ninguém há que o ignore, e ainda há pouco tivemos notícia da magnífica tourada de Madri, por ocasião do consórcio da malograda esposa do rei. O touro nivela todas as classes da Espanha; nos dias de tourada, só há uma entidade superior a todos os espanhóis, é o capinha ou como melhor nome haja, sujeito que, em chegando à celebridade, fica sendo o beijinho de todas as duquesas de Castela, ombreia com todos os Olivares e Osunas, e em certos dias reúne em si todas as forças vivas da razão. Nem lhe serão adversos os cônegos e monsenhores; os quais, não sei se ainda hoje, mas no século XVII, eram grandemente assíduos naquelas tremendas festas, não obstante uma bula papal de excomunhão.



Neste ponto é que eu tiro o meu barrete aos jesuítas. Um velho escritor inglês, Lord Charendon, que historiou a revolução de Cromwell, conta que as arquibancadas do clero e da Inquisiçao estavam sempre cheias de espectadores, sem contar os frades, que lá iam com seus hábitos. Só não iam os jesuítas, - os quais (conta o lord) marcavam sempre para aqueles dias algum solene exercício, que os obrigava a estar incorporados, - that obriges their whole body to be together. Não se pode pintar mais vivamente a sedução das touradas e a habilidade da Ordem. Esta sabia qual era a influência do meio social e a atração do exemplo, e vencia-as a seu modo, sem imposição. Digam-me se não é caso de lhe tirar o meu barrete.



Tirá-lo e copiá-lo. Nos dias de tourada, se o meu olho piscar de curiosidade, se o meu pé palpitar de impaciência, reúno-os a todos eles, olhos, pés e braços, em um exercício qualquer, quando mais não seja, em examinar as causas de um singular fenômeno: o das desarmonias da Sociedade Filarmônica, que, depois de dar o seu concerto no Conservatório, vem dar na imprensa um charivari.



VI



O sonambulismo tem sido aplicado à cura de moléstias, e ultimamente à busca das coisas perdidas e à predição do futuro, o que aliás a nossa polícia contestou de um modo formal e urbano. Faltava aplicá-lo à política dos Estados; é o que acaba de fazer o governo argentino. O governo argentino mandou, por descuido, o orçamento ao Senado, devendo mandá-lo à Câmara; o Senado, não menos sonâmbulo que o governo, pôs o orçamento em discussão. A Câmara estranhou esses dois cochilos; mas não podendo ser excluída da virtude sonambúlica, é muito provável que adormeça também, e vote a lei, com os olhos fechados. Resta que os contribuintes, ainda mais sonâmbulos do que os dois poderes, paguem a si mesmos os impostos; o que permitirá ao governo remeter então o orçamento ao congresso literário; e, caso este recuse, à biblioteca de Alexandria.



Generalizado o sistema, ninguém pode prever onde chegarão as nações mais policiadas do globo. Veremos os embaixadores fumarem as credenciais e apresentarem um charuto aos governos, darem satisfação a si mesmos dos insultos que houverem praticado, comerem com a mão e darem o garfo a apertar aos seus convivas. Nas Câmaras, os deputados deixarão o recinto quando se discutirem os projetos, e entrarão unicamente para votá-los: coisa que só se pode explicar no estado de sonambulismo. Tais e quejandas serão as conseqüências do sistema, se ele passar de Buenos Aires ao resto do mundo: o que Deus não permita, ao menos nestes séculos mais próximos.



VII



Não é de pequena gravidade a notícia, chegada esta semana, de que na ilha de Itaparica duas parcialidades se acham em armas e em guerra, tendo já havido mortos feridos. Disse-se a princípio que a causa do litígio era a posse das influências locais, como se influir em Itaparica fosse coisa tão superfina, que levasse um homem a perder as orelhas, as costelas, e, quando menos, a vida. Ainda se o vencedor pudesse ficar dono único da ilha, como Robinson, compreendo a fúria dos habitantes, não porque fosse mais nobre possuir algumas jeiras de terras sem gente, mas porque seria menos árduo. Antes Robinson que Sancho, que ao cabo de dez dias de governador, voltou desencantado a pôr a albarda no seu ruço. Nada; não há de ser isso; o motivo deve corresponder ao perigo e ao esforço; deve ser talvez o trono de Marrocos, vago esta semana, ou coisa assim.



E daí pode ser que o motivo do litígio seja este recente problema: - Quem quebrou o braço da menina Luzia? - o qual parece destinado a quebrar por sua vez todas as cabeças pensantes. O congresso de Berlim destrinçou mais depressa a questão turca, do que nós veremos resolver este caso, essencialmente nebuloso; salvo se aceitarem a minha solução, que combina todas as versões opostas: foi o tamanco e só o tamanco que quebrou o braço. Porquanto, só um tamanco podia ter a crueldade de bater numa criança, ao sair de um hospital. Nem seria acertado esperar caridade dos tamancos: não é esse o seu forte; outros dirão que não é o seu fraco.





[17] [4 agosto]



I



HOJE, SIM; posso pôr as manguinhas de fora. Sendo positivo que nenhum cidadão correto almoça agora como nos demais dias, conto não ser lido com o repouso do costume. Na verdade, mal se pode crer que o leitor tenha tempo de tomar o seu banho frio, beber às pressas dois goles de café, enfiar a sobrecasaca, meditar a sua chapa de eleitores, e encaminhar-se às reuniões. Pode ser que leia antes, às carreiras, o jornal que lhe for mais simpático; mas, uma vez feita essa oração mental, nenhuma obrigação mais o retém fora da arena, onde os partidos vão pleitear amanhã a palma do triunfo.



Que monta uma página de crônica, no meio das preocupações de momento? Que valor poderia ter um minuete no meio de uma batalha, ou uma estrofe de Florian entre dois cantos da Ilíada? Evidentemente nenhum. Consolemo-nos; é isto mesmo a vida de uma cidade, ora tétrica, ora frívola, hoje lúgubre, amanhã jovial, quando não é todas as coisas juntas. Sobretudo, aproveitemos a ocasião, que é única; deixemos hoje as unturas do estilo; demos a engomar os punhos literários; falemos à fresca, de paletó branco e chinelas de tapete.



Que ele há de levar umas férias para nós outros, beneditinos da história mínima e cavouqueiros da expressão oportuna. Vivemos seis dias a espreitar os sucessos da rua, a ouvir e palpar o sentimento da cidade, para os denunciar, aplaudir ou patear, conforme o nosso humor ou a nossa opinião, e quando nos sentarmos a escrever estas folhas volantes, não o fazemos sem a certeza (ou a esperança!) de que há muitos olhos em cima de nós. Cumpre ter idéias, em primeiro lugar; em segundo lugar expô-las com acerto; vesti-las, ordená-las, a apresentá-las à expectação pública. A observação há de ser exata, afacécia pertinente e leve; uns tons mais carrancudos, de longe em longe; uma mistura de Geronte e de Scapin, um guisado de moral doméstica e solturas da Rua do Ouvidor...



II



... Uma coisa semelhante à situação recente de Campos. Campos reuniu duas coisas raras e não incompatíveis; deu-se ao tumulto e à goiabada. Ao passo que nós gastamos a semana a recear alguma coisa para amanhã. Campos iniciou a agitação no domingo último, e fê-lo de um modo franco, largo e agreste. Campos disse consigo que a reputação da goiabada é inferior a uma nobre ambição política, e que a gratidão do estômago, posto seja ruidosa, é por extremo efêmera; dura o espaço de um quilo, menos do que as estafadas rosas de Malherbe. Campos entendeu que lutar com a goiabada de Jacobina e a compota da Europa não satisfaz a vida inteira de uma cidade, e que era tempo de lançar o cacete de Breno na balança dos seus destinos.



Isto disse Campos; dizê-lo e atirar-se ao pleito eleitoral foi obra de um momento. Então começou uma troca de finezas extremamente louvável, capangas austeros começaram a distribuir entre si os mais sólidos golpes de cacete; e assim como Sganarello se fez médico a pau cada um deles buscou doutorar os outros na mesma academia. Antes do exemplo, poder-se-ia crer que as mãos habituadas a remexer o açúcar nos tachos não chegariam a praticar uma ação tão demonstrativa; erro manifesto, porque nenhuma lei divina ou humana impede cuidar, com igual mérito, da gulodice e dos direitos do homem.



A interferência da atriz Helena Balsemão, segundo o telegrama, é que tornou um pouco enigmática a agitação eleitoral de Campos. A atriz Helena, se tinha opiniões políticas, eram singularmente cambiantes, mudáveis e indecisas, visto que nunca as expôs (creio eu) de um modo formal. No mesmo caso estava o ator Rodrigues, que, se alguma vez representou Richelieu ou Bolingbroke, nunca ficou com a pele do personagem, ao ponto de entranhar em si mesmo as opiniões de cada um deles. Quanto ao ator Roland, que, com os outros dois, deu lugar à suspensão do espetáculo, o único vestígio político que lhe podíamos atribuir era o nome, nada mais. Não obstante esses antecedentes, o telegrama deu-o a todos três como órgãos e pacientes de opiniões contrárias. Verdade é que acrescentou serem ciúmes as causas da agitação dos três; mas ninguém ignora que os telegramas são dados ao eufemismo, à antinomia, à simulação; divergência é o que ele quis dizer.



Felizmente, o temporal foi dissipado, mediante uma brisa de conciliação. Os partidos chegaram a acordo. Cada um deles resolveu dar certo número de eleitores; e duvido que as urnas não correspondam fielmente a estas intenções pacíficas. De maneira que a atriz Balsemão foi a única que perdeu no jogo. Qu'allait-elle faire dans cette galère?



Cá pela corte estivemos toda a semana em simples preparativos.



Reuniões, sim, e de todos os partidos, inclusive o republicano, reuniões noturnas, sucessivas e até simultâneas. Naturalmente as de uns eram vigiadas por outros, tal qual como nos exércitos, que se espiam mutuamente. Há ardor e resolução; e, se nem todos os costumes eleitorais me agradam, antes esse ardor do que apatia.



Há ânimos generosos que presumem sermos chegados a um tempo em que a política é obra científica e nada mais, eliminando assim as paixões e os interesses, como quem exclui dois peões do tabuleiro do xadrez. Belo sonho e deliciosa quimera. Que haja uma ciência política, sim; que os fenômenos sociais sejam sujeitos a regras certas e complexas, justo. Mas essa parte há de ser sempre a ocupação de um grupo exclusivo, superior ou alheio aos interesses e às paixões. Estes foram, são e hão de ser os elementos da luta quotidiana, porque são os fatores da existência das sociedades. O contrário, seria supor a possibilidade de convertê-las em academias ou gabinetes de estudo, suprimir a parte sensível do homem, - coisa que, se tem de acontecer, não o será antes de dez séculos.



Vejo que o leitor começa a cabecear. Este período engravatado tem-lhe ares de mestre-escola.



Naturalmente, prefere saber alguma coisa das chapas eleitorais. Dir-lhe-ei somente que os operários de Niterói apresentam uma, declarando no cabeçalho, que é indispensável derrubar os casacos. Havendo, entre os candidatos dessa lista, dois tenentes, dois capitães e um major da guarda nacional, devo concluir que, em geral, ou os majores e capitães não trajam casaca, ou que os escolhidos eliminaram esse vestido. Único modo de explicar o programa dos autores e a presença dos majores. Quanto ao programa em si, parece um pouco fantástico, e é nada menos que naturalíssimo: é o sentimento das aparências. A casaca, por ser casaca, não faz mal nem bem, a culpa ou a virtude é dos corpos, e menos dos corpos que das almas. Tempo houve em que se fez consistir o civismo em uma designação comum: cidadão; ao que acudiu um poeta com muita pertinência e tato:



Appellons-nous messieurs et soyons citoyens.



III



Houve e há muita agitação nos assinantes da série ímpar do Teatro Lírico, que estão profundamente ressentidos, mas de um ressentimento que nada tem com a política, e tem tudo com o calendário e a aritmética.



Com efeito, o empresário Ferrari, - ou o diabo por ele, - teve notícia de que Josué mandara parar o sol, e quis enriquecer o nosso tempo com outro milagre análogo: decretou que a récita 6a antecedesse a récita 5a a despeito do Laemmert, do Besout, do Observatório Astronômico e da Câmara Eclesiástica. Isto feito deu aos assinantes da récita 6a a primazia dos Huguenotes e a estréia da Mariani e outras, e declarou que os assinantes da récita 5a teriam os sobejos dos seus colegas.



Era muito, era levar a audácia a um limite desconhecido de todos os sátrapas do Oriente; era manifestar que nenhuma consideração lhe merece este povo, o mais meigo de todos os povos. A razão, insinuada por ele, de que os assinantes da série par também são filhos de Deus e podem gozar uma ou outra estréia, revela da parte do Ferrari tendências enigmáticas. Acresce que é uma razão ridícula; o Ferrari não pode ignorar que o número é o número da perfeição. Mas se esta consideração não bastasse, poderíamos recordar que a série ímpar está toda assinada, ao passo que a série par apenas conta algumas raras assinaturas; prova evidente de que há na série par um princípio mórbido, uma feição sepulcral, que arreda daí a maior parte da gente. Conseqüentemente, se o maior grupo é o ímpar, ao outro grupo, que é o menor, só poderá caber, quando muito, o terço eleitoral.



Talvez o Ferrari imagine que, sendo igual o preço, iguais devem ser as vantagens; mas esse erro do empresário origina-se na persuasão de que ele fez um contrato igual e perfeito com todos os assinantes. Não fez. A igualdade única é a do preço; no mais, quem lhes sustenta a empresa são os assinantes da primeira série, - o maior número. Nem o preço serviu nunca de bitola à distribuição das vantagens. No antigo regímen, o terceiro estado pagava o imposto e não comandava os regimentos. Ora, esse sistema, se foi momentaneamente excluído da constituição dos Estados, não o foi nem o pode ser das organizações líricas; é até a graça especial delas.



Ao passo que a série ímpar, justamente magoada, protesta contra a escamoteação das estréias, a série par exulta de contentamento. Compreende-se; há felicidades que excedem o limite das esperanças quotidianas; tal é a dos assinantes que ouvem a primeira representação de uma ópera, em vez de ouvir a segunda; que assistem na quinta-feira a um espetáculo, que só lhes dariam dois dias depois. Meu Deus! os assinantes pares bem sabem que a ópera é a mesma, e os mesmos os cantores; mas que diferença entre a quinta-feira e o sábado! e sobretudo, que homenagem nessa transposição de números! Imaginem qual seria o prazer dos perus, se os preferissem aos pavões? Pois é a mesma coisa; com o simples acréscimo de que a empresa não faz acepção de aves, uma vez que lhe deixem as penas.



Se me permitem um conselho, direi que é conveniente a cada uma das partes ceder alguma coisa. A empresa deve atender um pouco mais a maioria, e a maioria deve fechar os olhos a uma ou outra facilidade da empresa. Ao cabo, é o único meio de ter uma companhia por ano. O Ferrari não é decerto o Messias da arte lírica, alguns querem até que seja o diabo, como já se disse nestas colunas; e confesso que, por certos indícios, começo a suspeitar que efetivamente o verdadeiro Ferrari ficou no mosteiro dos capuchos, onde continua a pregar aqueles sermões sobre o demo e suas pescarias. Mas permitam-me os tubarões que lhes diga: agora não tem remédio; fechem os olhos a alguma coisa menos aprazível, ou desistam de ouvir cantar, ao menos uma vez por ano. O melhor de tudo seria inventar um Ferrari de engonço alheio e superior aos interesses da caixa. Mas, por enquanto, não há remédio senão aceitar este, que é de carne e osso como nós.



Quanto às novas estréias, parece que a mais estrondosa foi a plástica da Fiorio. Ao passo que a Mariani deixou a voz na mala (dizem-no os entendidos), a Fiorio trouxe-a nas formas: é o seu único algodão. Acrescentam os entendidos que a Vênus de Médicis, se cantasse, cantaria do mesmo modo que essa gentil contralto. Creio, porque ainda a não vi. E acho que não é caso de lástima. A empresa obrigou-se a dar-nos os produtos de uma arte, se acrescenta a esses os produtos da escultura, tem ido além da sua obrigação: é benemérita.



IV



Nada direi das corridas de domingo, para não cair na repetição. A vida fluminense compõe-se agora de óperas, corridas, patinação e pleito eleitoral; é um perpétuo bailado dos espíritos. Felizes as províncias, onde há sempre um macróbio notável, uma correria de índios, um produto vegetal, qualquer coisa que matize a uniformidade da vida; quando menos, um retirante que gerou quarenta e dois filhos, como aquele de Jaguará.



Dizer que as corridas estiveram chibantes, e que a poule foi concorridíssima, é repetir o comentário feito a todos esses espetáculos; é perder o tempo e os leitores. Desta vez houve só dois episódios novos: o gatuno, que arrebatou um prêmio de seiscentos mil-réis, sem ser a unhas de cavalo; e o cavalo, que ganhou um prêmio de quinhentos, correndo sozinho. À vaincre sans péril, on triomphe sans gloire, dizia o poeta, é o caso do cavalo e não o do gatuno.



A patinação, que eu disse acima ser parte componente da nossa vida atual, começa a adicionar alguns hors-d'oevre, como a ondina, moça que respira debaixo d'água. Não gosto de ver esta ondina enrodilhada com a patinação; cheira-me aos saraus dançantes do Clube Politécnico, - duas coisas bem pouco conciliáveis. Bem sei que é um tempero a ondina; e, a dar crédito ao retrato que anda aí exposto na Rua do Ouvidor, um tempero de algum sabor, mas, enfim, é um tempero. Voltemos às comidas simples.





[18] [ 11 agosto]



I



SUPÔS-SE por muito tempo que o Camões inventava a ilha dos Amores. Aqueles costumes, aquela corrida de ninfas e soldados, principalmente a do Leonardo, com a dama que lhe coube em sorte, e os famintos beijos na floresta, e o mimoso choro que soava, tudo aquilo fazia crer que se tratava de uma pura imaginação do poeta. Descobriu-se agora que a ilha dos Amores é nada menos que a ilha de Paquetá.



Entendamo-nos; não digo que em Paquetá haja Leonardos, nem que ali vá ter a caravela de nenhum Gama. Há um falar e dois entenderes. O que digo é que, no ponto de vista eleitoral, a nossa ilha vale a de Camões. Cá na cidade houve um ou outro desaguisado, duas ou três cabeças quadradas, várias contestações, enfim as competências do costume; não muitas, nem tais como faziam recear os espíritos medrosos. A profecia dos timoratos também falhou em relação ao interior, onde houve alguns conflitos, é certo, mas em raros pontos. O pior, e o mais recente, foi o de Irajá. Paquetá, entretanto, coroou-se de mirtos; fez-se a mais luminosa das auréolas.



Muito antes de começarem os trabalhos eleitorais, já os votantes de todos os credos políticos estavam na matriz. A manhã era linda; o mar espreguiçava-se sonolento, e o céu, um céu grego ou toscano, azulava-se a si e à consciência paroquial. A brisa que soprava parecia a respiração da própria Vênus. Dissera-se que não era Paquetá, mas Chipre ou Quio ou Tênedos, alguma daquelas ilhas que a natureza emergiu para eterna saudade da imaginação. Com um pouco de fantasia, poder-se-ia supor que a barca da carreira da corte era um navio do porto de Pireu, e que o cabo da guarda era o próprio Temístocles.



Reunidos os votantes no adro da igreja, entretiveram-se num fadinho neutro. Umbigos liberais tocavam os umbigos conservadores, ao som da viola republicana: era a fraternidade política e coreográfica. Fatigados da dança, e não tendo chegado a hora legal, um dos votantes sacou do bolso os Incas de Marmontel; idéia engenhosa, mas não única, porque outro votante tirou a Marília de Dirceu; ao que se seguiu uma longa troca de cortesias e finezas, querendo o primeiro que se lesse o livro do segundo, e o segundo que se lesse o do primeiro. Um mesário combinou os dois opostos desejos, propondo que em vez de um e outro livro, averiguassem amigavelmente um grave ponto histórico, a saber, se o eclipse de 1821 foi anterior ou posterior a Henrique IV.



Aceita a idéia, ocuparam-se os votantes em agradável palestra, que durou meia hora, ficando afinal unanimemente resolvido que, sendo Henrique IV anterior ao eclipse de 1821, este, quando muito, podia ser seu contemporâneo. Um dos votantes declarou que concedia a última hipótese, unicamente para o fim de se não quebrar a harmonia em que ali se achavam, mas que em consciência não podia admitir a contemporaneidade dos dois fenômenos. Todos os outros lhe agradeceram essa delicada atenção.



Aproximando-se a hora eleitoral, foi servido um lauto almoço, composto de iguarias, que não eram peixe nem carne: ervas, frutas, ovos, leite, confeitos e pão. Brindaram-se a todas as harmonias, desde a harmonia das esferas até a dos corações; leram-se madrigais; glosou-se o mote: Hei de amar-te até morrer. Seguiram-se as chamadas do costume, ao som de lindas peças executadas pela banda da sociedade particular Flor Paquetaense. Cada votante, por uma delicada competência de generosidade, votava nos candidatos do partido adverso. Esta competência repetiu-se na apuração; os escrutinadores, por efeito da mais honesta perfídia, liam nas listas dos candidatos do seu credo os nomes dos do credo oposto, donde resultou estabelecer-se a anterior proporção dos sufrágios. Acabada a apuração, todos os eleitos protestaram contra o resultado, declarando que, em consciência, os eleitos eram os outros. Não consentindo os outros, propôs um mesário anular o trabalho e votarem de novo em candidatos que não residissem na paróquia. O que se fez prontamente com o resultado seguinte:



Barba-Roxa ........................................................................................ 47 votos



João Sem Terra .................................................................................. 47 "



Nostradamus ....................................................................................... 45 "



Gregório de Matos .............................................................................. 45 "



Pausânias ............................................................................................ 44 "



Maragogipe ......................................................................................... 44 "



Rui Blas ............................................................................................... 41 "





Logo que este resultado foi conhecido, houve em toda a assembléia os mais estrondosos aplausos, a que se seguiu um amplexo universal e único. Retiraram-se todos para suas casas, debaixo do mesmo céu, - toscano ou grego, - e ao som dos mesmos suspiros do mar, tranqüilo como um sepulcro. Paquetá dormiu o sono das consciências virgens.



Ri-se o leitor? Espanta-se talvez desta narração, que lhe parece fantástica? Não sei, entretanto, se poderá explicar de outro modo o fato de ter o subdelegado de Paquetá, promovido a retirada da força que para lá fora. Quando a autoridade pública, no interesse da ordem, buscava auxiliar as mesas eleitorais, armando-as com os meios de dominar qualquer tumulto, sempre possível no estado de exaltação em que se achavam os ânimos, Paquetá declarou dispensar a força que lhe mandaram, certa de fazer uma eleição pacífica. Este procedimento faz crer que Paquetá é o seio de Abraão, a morada da concórdia pública, o primeiro centro de uma forte educação política.



Cá na cidade, na freguesia da Glória, não correram as coisas inteiramente assim; deu-se um distúrbio, talvez dois; a mesma coisa aconteceu no Engenho Velho e em S. José. Quanto à primeira dessas paróquias, houve duas mesas, uma interior e outra exterior, uma congregada, outra dispersa e errante: pequena imagem da Igreja, ao tempo em que existiam duas cúrias, a de Roma e a de Avinhão. Qual das duas mesas fosse a de Avinhão, era o que nenhum estrangeiro estudioso poderia saber ao certo, pois a opinião variava de homem a homem. Quanto ao caso de Irajá, esse ataque de cem homens armados e entrincheirados contra doze praças que voltavam de cumprir o seu dever, foi simplesmente uma crueldade sem explicação.



Vem a propósito dar um conselho aos futuros legisladores. Provavelmente, teremos uma reforma eleitoral, em breves dias, reduzindo a um grau o sistema de grau duplo: sistema mais complicado que necessário. Penso que é a ocasião de retirar as eleições das matrizes,pois que inteiramente falhou o pensamento de as tornar pacíficas pela só influência do lugar. Já o finado Senador Dantas, que sabia dar às vezes ao pensamento uma forma característica, dizia em pleno Senado: "Senhores, convém que as coisas da igreja não saiam à rua, e que as coisas da rua não entrem na igreja". Referia-se às procissões e às eleições.



Que as procissões saiam à rua não há inconveniência palpável; mas que os comícios sejam convocados para a igreja, eis o que é arriscado, e em todo o caso ocioso. Na igreja reza-se, prega-se, medita-se, conversa a alma com o seu Criador; as paixões devem ficar à porta, com todo o seu cortejo de causas e fins, e os interesses também, por mais legítimos que sejam.



II



Desta vez parece que o Partido Republicano fez uma entrada mais solene no pleito eleitoral; lutou sozinho em alguns pontos; em outros, lutou com alianças; resultando-lhe dessa política algumas vitórias parciais.



O Partido Republicano, não obstante as convicções dos seus correligionários, nasceu principalmente de um equívoco e de uma metáfora: a metáfora do poder pessoal; e a este respeito contarei um apólogo... persa.



Havia em Teerã um rapaz, grande gamenho e maior vadio, a quem o pai disse uma noite que era preciso escolher um ofício qualquer, uma indústria, alguma coisa em que aplicasse as forças que despendia, arruando e matando inutilmente as horas. O moço achou que o pai falava com acerto, cogitou parte da noite e dormiu. De manhã foi ter com o pai e pediu-lhe licença para correr toda a Pérsia, a fim de ver as diferentes profissões, compará-las e escolher a que lhe parecesse mais própria e lucrativa. O pai abençoou-o; o rapaz foi correr terra.



Ao cabo de um ano, regressou à casa do pai. Tinha admirado várias indústrias e profissões; entre outras, vira fazer chitas, as famosas chitas da Pérsia, - e plantar limas, as não menos famosas limas da Pérsia; e destas duas ocupações, achou melhor a segunda.



- Lavrar a terra, disse ele, é a profissão mais nobre e mais livre; é a que melhor põe as forças do homem paralelas às da natureza.



Dito isto, comprou umas jeiras de terra, comprou umas sementes de limas e semeou-as, depois de invocar o auxílio do sol e da chuva e de todas as forças naturais. Antes de muitos dias, começaram a grelar as sementes; os grelos fizeram-se robustos. O jovem lavrador ia todas as manhãs contemplar a sua obra; mandava regar as plantas; sonhava com elas; vivia delas e para elas. - Quando as limeiras derem flor, dizia ele consigo, convidarei todos os parentes a um banquete; e a primeira lima que amadurecer será mandada de presente ao xá.



Infelizmente os arbustos não se desenvolviam com a presteza costumada; alguns secaram; outros não secaram, mas também não cresceram. Estupefação do jovem lavrador, que não podia compreender a causa do fenômeno. Ordenou que lhe pusessem dobrada porção d'água; e vendo que a água simples não produzia efeito, mandou enfeitiçá-la por um mago, com as mais obscuras palavras dos livros santos.



Nada lhe valeu; as plantas não passaram do que eram; não vinha a flor, núncia do fruto. O jovem lavrador mortificava-se; gastava as noites e os dias a ver um meio de robustecer as limeiras, esforço sincero, mas inútil. Entretanto, ele lembrava-se de ter visto boas limeiras em outras províncias; e muitas vezes comprava excelentes limas no mercado de Teerã. Por que razão não alcançaria ele, e com presteza, a mesma coisa?



Um dia, não se pôde ter o jovem lavrador; quis, enfim, conhecer a causa do mal. Ora, a causa podia ser que fosse a falta de alguns sais no adubo, ares pouco lavados, certa disposição do terreno, pouca prática de plantador. O moço, porém, não cogitou em nenhuma dessas causas imediatas; atribuiu o acanhamento das plantas... ao sol; porque o sol, dizia ele, era ardente e requeimava as plantas. A ele, pois, cabia a culpa original; era ele o culpado visível, o sol.



Entrando-lhe esta convicção no ânimo, não se deteve o rapaz; arrancou todas as plantas, vendeu a terra, meteu o dinheiro no bolso, e voltou a passear as ruas de Teerã; ficou sem ofício.



Conclusão: se soubéssemos um pouco mais de química social...



III



Ao que parece, negreja um grande temporal no horizonte lírico. Sobre a cabeça da empresa, aglomeram-se pesadas nuvens, não tarda roncar a Tijuca e a pateada. Esta semana trouxe novos vendavais, cujo desencadeamento será terrível, se o não conjurar algum deus benévolo.



Pobre Ferrari! Bem pouco durou a tua realeza. Há dois anos entraste aqui como uma espécie de Messias da fé nova. Tinhas inventado a Sanz, os maiores olhos que jamais vi, e que a faziam semelhante a Juno, a Juno dos olhos de boi, como diz Homero, ou olhitoura, como traduz o Filinto. Tinhas inventado a Visiack, uma artista, a Rubini, uma graça, e o Gayarre, um rouxinol. Acrescia que chegavas depois de um longo e impaciente jejum de música, porque o governo retirara, há muito, a subvenção ao teatro lírico; e neste assunto estávamos reduzidos a intermitências do Lelmi, a uma ou outra Parodi adventícia. Vieste; abrimos-te os nossos corações, cobrimos-te de flores, anagramas e assinaturas. Estas, a princípio, foram pagas à vista; e depois, antes da vista. Então começou a tua decadência; prometeste mundos e fundos, ficaste com os fundos, sem nos dar os mundos; perdeste a nossa estima, estás a pique de perder a nossa misericórdia.



A largueza pública, entretanto, foi condigna do nosso nome. Ninguém regateou os preços, que ao parecer de quase todos eram mais que razoáveis. Trazer bons cantores, boas óperas, bons coros e bons cenários, trazê-los a este recanto da América, revelar-nos a Aída, não era tarefa que se pagasse com pouco; era justo. Demais, sabe toda a gente que, abaixo do doce de coco, o que o fluminense mais adora é a boa música. Haverá, e não raros, que jamais possam suportar uma cena do Cid ou um diálogo do Hamlet, que os achem supinamente amoladores, tanto como os antigos dramalhões do Teatro de S. Pedro; mas nenhum há que se não babe ao ouvir um dueto. E isto vem desde a infância; nas escolas aprende-se a ler a carta de nomes cantando; e ninguém ignora que a primeira manifestação do menino carioca é o assobio.



Ora, o Ferrari deve ter aproveitado esta nossa disposição, em vez de fiar-se na benevolência pública, que é limitada como uma companhia inglesa. Que lhe pedíamos nós? Simplesmente o que nos deu há dois anos, quando lhe não pedimos nada. Ninguém exigia a Patti nem o Nicolini, - o que seria caro, - nem somente um dos dois, o que seria ainda mais caro, cruel. Mas entre a Repetto e a Patti não haverá um termo médio? Dizem que o Ferrari não está menos desgostoso do que nós; murmura-se que foi embaraçado. Acresce que os cantores não estão em excessiva harmonia com ele; e já ameaçam lavar os calções na rua; ameaça, a que o Ferrari retorquiu, desafiando-os. Vamos ter uma pega de cernelha.



IV



Pega de cara é o que se está dando com a questão da praça do mercado, que renasce, complicada de umas unturas políticas.



No Skating houve esta semana grande pega de pé, uma brilhante corrida, que congregou, no recinto do estabelecimento, a fina flor da nossa sociedade; concorrência de quatro mil pessoas, pelo menos. O grande prêmio coube ao jovem filho de um estadista. Noto que, por ora, o belo sexo é avaro das suas graças na patinação. Salvo algumas meninas de cinco a onze anos, creio que nenhuma dama, ou rara, desceu à arena. Pois era o meio de lhe comunicar um pouco mais de elegância e correção.



V



Da semana só me restaria falar da cabeça original, que se mostra na Rua do Ouvidor, a tanto por entrada. Venda-mo a idéia de que o empresário quer apenas caçoar conosco, fazendo crer que uma cabeça original é objeto tão curioso, entre nós, que se pode mostrar por dinheiro. Não, especulador! não possuirás o meu estilo.





[19] [1 setembro]



I



O FATO culminante da semana foi talvez a proposta feita, anteontem, na Câmara Municipal, pelo Sr. Conselheiro Saldanha Marinho. Propôs o digno vereador a nomeação de uma comissão para examinar os atos em que a mesma Câmara tem sido despida de atribuições suas, e indicar medidas tendentes a restaurar as coisas, bem como um plano de reforma para aquela instituição, restituindo-se-lhe a força e o prestígio que perdeu. A proposta foi aprovada; e, posto me pareça que o seu resultado não pode corresponder ao pensamento que a formulou, acho que tanto a Câmara, como o eminente cidadão, procederam com intenção reta e animados de sentimentos liberais.



Não me obriguem os leitores a pôr os colarinhos do estilo grave, dizendo os graves motivos do meu parecer. Entende-se que daquelas colunas para baixo só podemos curar de minúcias, e este caso municipal é dos de máxima ponderação. Verdade é que, assim como a vida é entremeada de reflexões e pilhérias, também o folhetim pode, uma vez ou outra, sacudir a sua tosse parlamentar e deitar ao mundo uma ou duas observações de calibre sessenta. Vá que seja: imitemos a vida, por dois minutos.



Qualquer que seja a aquiescência dos poderes executivo e legislativo, acho que a proposta não terá o desejado efeito, e isto por um motivo estranho aos intuitos da Câmara e do Governo. Que seria útil e conveniente desenvolver o elemento municipal, ninguém há que o conteste; mas os bons desejos de alguns ou de muitos não chegarão jamais a criar ou aviventar uma instituição, se esta não corresponder exatamente às condições morais e mentais da sociedade. Pode a instituição subsistir com as suas formas externas; mas a alma, essa não há criador que lha infunda.



Não há muito quem brade contra a centralização política e administrativa? É uma flor de retórica de todo o discurso de estréia; um velho bardão; uma perpétua chapa. Raros vêem que a centralização não se operou ao sabor de alguns iniciadores, mas porque era um efeito inevitável de causas preexistentes. Supõe-se que ela matou a vida local, quando a falta de vida local foi um dos produtores da centralização. Os homens não passaram de simples instrumentos das coisas. É o que acontece com o poder municipal; esvaiu-se-lhe a vida, não por ato de um poder cioso, mas por força de uma lei inelutável, em virtude da qual a vida é frouxa, mórbida ou intensa, segundo as condições do organismo e o meio em que ele se desenvolve. É o que acontece com o direito de voto; a reforma que reduzir a eleição a um grau será um melhoramento no processo e por isso desejável; mas dará todas as vantagens políticas e morais que dela esperamos? Há uma série de fatores, que a lei não substitui, e esses são o estado mental da nação, os seus costumes, a sua infância constitucional...



Lá me ia eu resvalando neste declive das ponderações graves, que só a espaços, e ao de leve, podem ser lícitas à mais desambiciosa das crônicas deste mundo. Encerremos o período, leitor; e passemos a assunto menos crespo, um assunto de comestíveis.



II



Porquanto, a dita Câmara Municipal, perguntando-lhe o procurador se podia mandar fornecer jantar ao Tribunal do Júri, quando as sessões se prolongassem até tarde, respondeu que não, visto que tal despesa não se acha autorizada em lei.



Teve razão a Câmara, e teve-a duas vezes; a primeira, porque a lei o veda, e a obediência à lei é a necessidade máxima; a segunda, porque o jantar é, de certo modo, um agente de corrução. Não me venham com sentenças latinas: primo vivere, deinde judicare. Não me venham com considerações de ordem fisiológica, nem com rifões populares, nem com outras razões da mesma farinha, muito próprias para embair ignorantes ou colher descuidados, mas sem nenhum valor ou alcance para quem olhar as coisas de certa altura. A questão é puramente moral; e a presença do rosbife não lhe diminui nem lhe troca a natureza. Não me venham também com o jantar na política; porque, em certos casos, não há incompatibilidade entre o voto e o prato de lentilhas; e, politicamente falando, o paio é uma necessidade pública. O caso dos jurados é outra coisa.


A primeira e inevitável conseqüência do jantar aos jurados seria a condenação de todos os réus, não porque o quilo implique severidade, mas porque induz à gratidão. Como se sabe, absolvidos os réus, paga a municipalidade as custas; não é crível que um tribunal de homens briosos e generosos condene a mão que lhe prepara o jantar. Convém contar com o pudor dos estômagos. Acresce que a digestão é variável em seus efeitos. Umas vezes inclina ao cochilo, e não se pode calcular que inúmeros erros judiciários sairão de um tribunal que dorme a sesta; outras vezes, o organismo precisa de locomoção, e as sentenças cairão da pena, como frutas verdes que um rapaz derruba. Não cito o caso dos que fazem o quilo entre a espadilha e o basto, e ficariam impacientes por sair; caso verdadeiramente assustador, visto que a maior das nossas forças sociais é o voltarete.

Cotejem agora as inconveniências do jantar com as vantagens do jejum. O jejum, um estado de graça espiritual, é uma das formas adotadas para macerar a carne e seus maus instintos. A satisfação da carne torce a condição humana, igualando-a à das bestas; ao passo que a privação amortece a condição bestial e apura a outra; fortifica, portanto, o ser inteligível, aclara as idéias, afina e eleva a concepção da justiça. A sopa tem suas vantagens; o assado não é, em si mesmo, uma abominação; pode-se almoçar e querer bem; não há incompatibilidade absoluta entre a virtude e a couve-flor. A justiça, porém, requer alguma coisa menos precária, mais certa; não se pode fiar de hipóteses, de casualidades, de temperamentos.


O que me admira, neste caso, não é a decisão da Câmara, que aplaudo, desde que é fundada em lei, e o respeito da lei é a primeira expressão da liberdade. O que me admira é que só agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri uma verbazinha para os seus pastéis? Só agora há estômagos naquele tribunal? Só agora há processos longos e juízes famintos? Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperar alguns mais.


III



Dizem os alemães que duas metades de cavalo não fazem um cavalo. Por maioria de razão se pode dizer que metade de um cavalo e metade de um camelo não fazem nem um cavalo nem um camelo. Isto, que parecerá axiomático aos leitores, é nada menos que um absurdo aos olhos dos partidos de uma das paróquias do Norte, a paróquia de S. Vicente; um absurdo, um paradoxo, uma monstruosidade.


Com efeito, os dois partidos daquela freguesia dividiram-se e trocaram as metades; feito o que, organizaram duas mesas, duas atas, duas eleições. Sendo por enquanto mui sumária a notícia, ignoro o modo pelo qual as duas metades dos dois programas foram coladas às metades alheias, e mais ignoro se fizerem sentido os períodos truncados. Há de ter sido muito difícil: talvez se reproduza o caso das duas notícias que apareceram ligadas, há anos, numa folha de New York. Tratava-se da prédica de um sacerdote e da investida de um boi.


O Rev. Simpson falou piedosamente dos deveres do cristão e das boas práticas a que está sujeito o pai de família; o auditório ouvia comovido as palavras do Rev. Simpson, o qual, investindo de repente contra todos, varreu a rua, derrubou mulheres e crianças, lançou enfim o terror em todo o bairro, até ser fortemente agarrado e reconduzido ao matadouro.


Verdade é que uma errata pode restituir o genuíno sentido dos dois programas, e estes aparecerão, reintegrados, na edição próxima. Se há uma arte para restaurar a primitiva escritura do palimpsesto, há outra para recompor devidamente os programas: questão de cola. O ponto mais obscuro deste negócio é a atitude moral dos dois novos partidos, a linguagem recíproca, as mútuas recriminações. Cada um deles vê no adversário metade de si próprio. O nariz de Aquiles campeia na cara de Heitor. Bruto é o próprio filho de César. Em vão busco adivinhar por que modo esses dois partidos singulares cruzaram armas no grande pleito; não encontro explicações satisfatórias. Nenhum deles podia acusar o outro de se haver ligado a adversários, porque esse mal ou essa virtude estava em ambos, não podia um duvidar da boa-fé, da lealdade, da lisura do outro, porque o outro era ele mesmo, os seus homens, os seus meios, os seus fins. Nunca vi mais claramente reproduzida a situação de Ximena, quando o amante lhe mata o pai; o partido que vencesse podia clamar como a namorada de Cid:

La moitié de mon âme a mis l'autre au tombeau.


IV



Ao que parece, não pega muito o espetáculo do soco inglês, - a box,- exercício inventado pela Sociedade Protetora dos Farmacêuticos; o que realmente me admira, porque a box é uma forma de luta romana inaugurada pelo professor Battaglia,- tendo, além disso, a circunstância de ser nova entre nós, e a virtude de dar extração à arnica,- "a grande arnica"- como dizia o finado Freitas. Pois não é que o soco seja um espetáculo desdenhado, quando no-lo dão casualmente aí nas ruas; acrescendo que, em tais casos, é irregular e sem método, ao passo que no estabelecimento da Rua do Costa está sujeito a certas fórmulas e regras de alta filosofia. Ao cabo é a mesma luta romana. Uma leva ao chão; outra leva aos narizes, é toda a diferença. Substancialmente, são duas ocupações recreativas e morais.


Que se perca a box! Cá nos fica o professor Battaglia, que padeceu, nesta semana, a sua segunda derrota,- a dar crédito ao adversário, e ao público, - ou mais uma vitória, - a dar-lhe crédito, a ele. O certo é que protestou e veio à imprensa desafiar o adversário para outra batalha decisiva, mediante condições magnânimas. O adversário afirmou o seu triunfo, mas recusou o repto. Acho que fez bem; se é certo que o professor caiu por engano, podia acontecer a mesma coisa ao seu vencedor, que perderia assim, de um lance, o prestígio e os quinhentos mil-réis.

Não obstante as derrotas, os reptos do professor Battaglia continuam a levar milhares de espectadores ao estabelecimento da Rua do Costa. Milhares: é a soma dos concorrentes nos grandes dias de patinação. Não esqueçam que a Rua do Costa é excêntrica, sobretudo para um povo, como somos, dado à pachorra e ao cansaço. Verdade é que a faculdade de conservar o chapéu na cabeça e o charuto na boca torna mais fácil e mais cômodo o acesso, e mais persuasivo o espetáculo.


Digo que continuaram os reptos, e devo incluir entre eles o do primeiro vencedor do Battaglia, que, animado com a vitória, também desafiou dali aos valentes que queiram pleitear com ele, mediante um prêmio de cem mil-réis. Foi o Hércules recente que lhe despertou esta idéia, a qual faz lembrar o caso dos sujeitos que começam a tratar pessoalmente dos seus processos, e tal gosto lhes acham, que acabam procuradores de causas. Não sei se teve adversários; é de crer que sim. Corre atualmente um frêmito de guerra pela espinha dorsal da sociedade.

Ignoro também se os noventa artistas, se os sessenta cavalos, as duas mulas, os dois veados e o asno da "Companhia Eqüestre de Combinação", têm correspondido à pompa dos seus anúncios. Dizem que sim; acrescenta-se que os espectadores, também aos milhares, têm aplaudido toda aquela arca de Noé. Parece que os artistas são habilíssimos, os cavalos educados, o asno um poço de sabedoria e um espelho de paciência.


V

Talvez o leitor lastime não ver em toda essa enfiada de recreios públicos alguma coisa que entenda com a mentalidade humana. Não a havemos de ir procurar no Teatro Lírico, aonde, em geral, só vão os dois primeiros sentidos. Nos teatros dramáticos encontraríamos essa coisa, se na mor parte não se compusessem de mágicas aparatosas, operetas medíocres, e o melodrama intenso, inofensivo e sepulcral. Danças, vistas, tramóias, tudo o que pode nutrir a porção sensual do homem, nada que lhe fale a essa outra porção mais pura; nenhum ou raro desses produtos do engenho, frutos da arte que deu à humanidade o mais profundo dos seus indivíduos.



Pobre espírito! Quem pensa em ti, nessa dança macabra de coisas sólidas? Quem oferece alguma coisa ao paladar dos delicados, não corrompido pelo angu do vulgo? Ninguém; tu és, não digo o réprobo, - seria supor que existes, pobre espírito! - tu és como que uma velha figura de retórica, um velho par de sapatos... Talvez lastimes isso, leitor, mas tens o meio de o lastimar, sem nada perder ou pouco. Recolhe-te, de quando em quando, fecha a tua porta, abre a tua despensa intelectual, e saboreia sozinho o manjar dos deuses. Agora, sobretudo, nestas noites de chuva ou de frio, é uma deliciosa volúpia. Goza e vinga-te, diria o Padre Vieira, parodiando-se a si próprio.


VI


Que nos divirtamos de um modo ou de outro, o Dr. Barbosa Rodrigues ocupa os seus lazeres em procurar um antídoto ao curare, e achou-o afinal, onde não supunha havê-lo. Fizeram-se no domingo as primeiras experiências, e continuam hoje, em presença de notáveis médicos, que afirmam ter o sal produzido todo o efeito que lhe atribui o jovem naturalista. Foi grande a satisfação, exceto nos porquinhos-da-índia, animais escolhidos para ensaiar o veneno e o remédio. É o destino dos fracos; servem de experiências aos mais fortes, quando lhes não servem de nutrição.



Pela minha parte, dou os parabéns ao Dr. Barbosa Rodrigues, e folgarei se a tal descoberta ficar ligado o nome brasileiro. Resta que o não deixemos eliminar por descuido ou outra coisa; e que alguma revista, - como indicarei adiante, - não faça grandes recomendações do antídoto, sem citar o inventor e sua nacionalidade .


VII


Vão os hóspedes saindo do banquete, à proporção que outros chegam e ocupam o seu lugar; é a perpétua substituição de convivas. Esta semana viu sair um, assaz venerando e digno das lágrimas que arrancou: Monsenhor Reis.


Monsenhor Reis era um dos sacerdotes mais populares, entre nós; ele, o Mont'Alverne, Monsenhor Marinho, Frei Antônio, o franciscano, foram os nomes que a nossa infância ouviu pronunciar com mais freqüência e veneração, sem esquecer o bispo, o excelso Conde de Irajá. Quase todos se foram, por aquela mesma e única porta. O que se retirou esta semana honrou o hábito que vestiu e a Igreja de que foi ornamento e lustre. Soube ser caridoso e útil, pacífico e bom.


Não fica eterno o nome de Monsenhor Reis; mais duas gerações, e ele cairá no perpétuo esquecimento. A humanidade conhece Caco, lembra-se de Cômodo, sem contar os malfeitores que o poeta florentino meteu entre as flamas eternas de seu verso; mas esquece os obscuros benfeitores, como este, que soube evangelizar, no sentido divino e no sentido humano, - com a esmola e com a educação.

VIII

Enquanto morre um padre, ressuscita um artista, - o Mesquita, que obteve nesta semana uma esplêndida manifestação do pessoal da Fênix, a que se associou o público. Trazem os jornais a narração dessa homenagem ao talentoso regente da orquestra, cujo brilhante talento de compositor há longos anos merece a estima e aplauso do povo fluminense. O Mesquita esteve às portas da morte; padeceu longamente, mas triunfou, enfim, não quis deixar tão cedo a sala da vida, onde é de desejar se demore longos anos.



A festa dizem que foi esplêndida; e tanto honra ao festejado como aos festejadores; prova certa de que se estimam e se merecem. Era esta a ocasião de dizer muita coisa do talento do Mesquita, de suas finas qualidades de compositor, se o espaço me não estivesse a fugir debaixo da pena, e o tempo no mostrador do relógio. Não faltará ensejo; e até lá não há de diminuir nem a vontade nem a admiração.


IX


Pois que falo de artistas, direi que, se o leitor tem aí, sobre a mesa, a Revue des Deux Mondes, folheie as páginas dos anúncios no fim, e leia o que se refere à Primeira Missa no Brasil, quadro do nosso Vítor Meireles, cuja cópia se vende em Paris.


Leia, e há de espantar-se de uma lacuna. O anúncio diz que o assunto "é o mais belo que até hoje tem aparecido"; que a cena "é uma das mais grandiosas do mundo"; que a reunião de trinta cinco cores faz com que "o quadro deixe a enorme distância de si tudo o que em tal gênero se tem obtido até agora". Diz tudo; só não diz o nome do autor, como se tal nome, nos termos do anúncio, não tivesse logo por si a imortalidade. Verdade é que o França Júnior nos disse ter achado a mesma lacuna no Fígaro, onde aliás lhe não aceitaram a notícia, que voluntariamente lhe foi levar. Tão certo é que até o merecimento precisa um pouco de rufo e outro pouco de cartazes. Ainda assim, antes a modéstia; é menos ruidosa, mas mais segura.


Já agora acabarei com uma sombra do sol: um calembour de Vítor Hugo. Essa triste forma de espírito teve a honra de ser cultivada pelo grande poeta; e quando? e donde? em Paris, por ocasião do cerco. Di-lo o Temps, que tenho à vista; e basta ler a estrofe atribuída ao poeta, para ver que é dele mesmo: tem o seu jeito de versificação. Um dia, - diz o jornal, - que alguns ratos, apanhados nas casas vizinhas, deram elementos para um pastel, o poeta improvisou este calembour metrificado:



O mes dames les hetaires,
À vos depens je me nourris;
Moi, qui mourais de vos sourires,
Je dois vivre de vos souris.

Cai-me a pena das mãos.