Um balanço, um mapa, da teoria literária seria, entretanto, concebível? E de que forma? Não seria esse um projeto abortado se, como afirma Paul de Man, "o principal interesse teórico
da teoria literária consiste na impossibilidade de sua definição"?4
A teoria não poderia, então, ser apreendida senão graças a uma teoria negativa, segundo o modelo desse Deus escondido do qual somente uma teologia negativa pode falar. Isso significa situar o horizonte alto demais, ou longe demais as afinidades, aliás reais, entre a teoria literária
e o niilismo. A teoria não pode se reduzir a uma técnica nem 15
a uma pedagogia - ela vende sua alma nos vade-mécum de capas coloridas expostos nas vitrinas das livrarias do Quartier Latin -, mas isso não é motivo para fazer dela uma metafísica nem uma mística.
Não a tratemos como uma religião. A teoria literária não teria senão um "interesse teórico"? Não, se estou certo ao sugerir que ela é também, talvez essencialmente, crítica, opositiva ou polêmica.
Porque não é do lado teórico ou teológico, nem do lado prático ou pedagógico, que a teoria me parece principalmente interessante e autêntica, mas pelo combate feroz e vivificante que empreende contra as idéias preconcebidas dos estudos literários, e pela resistência igualmente determinada que as idéias preconcebidas lhe opõem. Esperaríamos, talvez, de um balanço da teoria literária, que depois de ter oferecido sua própria definição de literatura, como definição contestável - trata-se, na verdade, do primeiro lugar-comum teórico: "O que é a literatura?"
-, depois de ter prestado uma rápida homenagem às teorias literárias antigas, medievais e clássicas, desde Aristóteles até Batteux, sem esquecer uma passagem pelas poéticas não-ocidentais, arrolasse as diferentes escolas que compartilharam a atenção teórica
no século XX: formalismo russo, estruturalismo de Praga, New Criticism
americano, fenomenologia alemã, psicologia genebresa, marxismo internacional,
estruturalismo e pós-estruturalismo franceses, hermenêutica, psicanálise,
neomarxismo, feminismo etc. Inúmeros manuais são assim: ocupam os professores e tranquilizam os estudantes. Mas esclarecem um lado muito acessório da teoria. Ou até mesmo a deformam, pervertem-na; porque o que a caracteriza, na verdade, é justamente o contrário do ecletismo, é seu engajamento, sua vis polemica, assim como os impasses a que esta
última a leva sem que ela se dê conta. Os teóricos dão a impressão, muitas vezes, de fazer críticas muito sensatas contra as posições de seus adversários, mas visto que estes, confortados
por sua boa consciência de sempre, não renunciam e continuam a matraquear, os teóricos se põem também eles a falar alto, defendem suas próprias teses, ou antíteses, até o absurdo,
e, assim, anulam-se a si mesmos diante de seus rivais encantados de se verem justificados pela extravagância da posição adversária.
Basta deixar falar um teórico e contentar-se em interrompê-lo de vez em quando 16
com um "Ah! um pouco debochado, para vê-lo desmoronar diante de nossos olhos!
Quando entrei no sexto ano do pequeno liceu Condorcet, nosso velho professor de latim-francês, que era também prefeito de sua cidadezinha na Bretanha, perguntava-nos a cada texto de nossa antologia: "Como vocês compreendem essa passagem? O que o autor quis dizer? Onde está a beleza do verso ou da prosa? Em que a visão do autor é original? Que lição podemos tirar daí?" Acreditamos, durante um tempo, que a teoria literária tivesse banido para sempre essas questões lancinantes. Mas as respostas passam e as perguntas permanecem. Estas são mais ou menos as mesmas. Há algumas que não cessam de se repetir de geração em geração. Colocavam-se antes da teoria, já se colocavam antes da história literária, e se colocam
ainda depois da teoria, de maneira quase idêntica. A tal ponto que nos perguntamos se existe uma história da crítica literária, como existe uma história da filosofia ou da lingüística, pontuada de criações de conceitos, como o cogito ou o complemento. Na crítica, os paradigmas não morrem nunca, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou menos pacificamente e jogam indefinidamente com as mesmas noções - noções que pertencem à linguagem popular. Esse é um dos motivos, talvez o principal motivo, da sensação de repetição que se experimenta, inevitavelmente, diante de um quadro histórico da crítica literária: nada de novo sob o sol. Em teoria, passa-se o tempo tentando apagar termos de uso corrente: literatura, autor, intenção, sentido, interpretação, representação, conteúdo, fundo, valor, originalidade, história, influência, período, estilo etc. É o que se fez também, durante muito tempo, em lógica: recortava-se na linguagem cotidiana uma região lingüística dotada de verdade. Mas a lógica formalizou-se depois. A teoria literária não conseguiu desembaraçar-se da linguagem corrente sobre a literatura,
a dos ledores e a dos amadores. Assim, quando a teoria se afasta, as velhas noções ressurgem intocadas. É por serem "naturais" ou "sensatas" que nunca escapamos delas realmente? Ou, como pensa de Man, é porque só desejamos resistir à teoria, porque a teoria faz mal, contraria nossas ilusões sobre a língua e a subjetividade? Poderíamos dizer, hoje, que quase ninguém foi tocado pela teoria, o que talvez seja mais confortável. 17
Então, não restaria mais nada, ou apenas a pequena pedagogia que descrevi? Não inteiramente. Na fase áurea, por volta de 1970, a teoria era um contradiscurso que punha em questão as premissas da crítica tradicional. Objetividade, gosto e clareza, Barthes assim resumia, em Critique et Vérité [Crítica e Verdade], em 1966, ano mágico, os dogmas do "suposto crítico" universitário, o qual ele queria substituir por uma "ciência da literatura". Há teoria quando as premissas do discurso corrente sobre a literatura não são mais aceitas como evidentes, quando são questionadas, expostas como construções históricas, como convenções. Em seu começo, também a história literária se fundava numa teoria, em nome da qual eliminou do ensino literário a velha retórica, mas essa teoria perdeu-se ou edulcorou-se à medida que a história literária foi se identificando com a instituição escolar e universitária.
O apelo à teoria é, por definição, opositivo, até mesmo subversivo e insurrecto, mas a fatalidade da teoria é a de ser transformada em método pela instituição acadêmica, de ser recuperada, como dizíamos. Vinte anos depois, o que surpreende, talvez mais que o conflito violento entre a história e a teoria literária, é a semelhança das perguntas levantadas por uma e por outra nos seus primórdios entusiastas, sobretudo esta, sempre a mesma: "O que é a literatura?"
Permanência das perguntas, contradição e fragilidade das respostas: daí resulta que é sempre pertinente partir das noções populares que a teoria quis anular, as mesmas que voltaram quando a teoria se enfraqueceu, a fim de não só rever as respostas opositivas que ela propôs, mas também tentar compreender por que essas respostas não resolveram de uma vez por todas as velhas perguntas. Talvez porque a teoria, à custa de sua luta contra a Hidra de Lema, tenha levado seus argumentos longe demais e eles tenham se voltado contra ela? A cada ano, diante
de novos estudantes, é preciso recomeçar com as mesmas figuras de bom senso e clichês irreprimíveis, com o mesmo pequeno número de enigmas ou de lugares-comuns que balizam o discurso corrente sobre a literatura.
Examinarei alguns, os mais resistentes, porque é em tomo deles que se pode construir uma apresentação simpática da teoria literária com todo o vigor de sua justa cólera, da mesma maneira que ela os combateu - em vão. 18
TEORIA E PRÁTICA DA LITERATURA
Algumas distinções preliminares são indispensáveis.
Primeiramente, quem diz teoria - e sem que seja preciso ser marxista - pressupõe uma prática, ou uma práxis, diante da qual a teoria se coloca, ou da qual ela elabora uma teoria. Nas ruas de Gênova, algumas salas trazem este letreiro: "Sala de teoria." Não se faz aí teoria
da literatura, mas ensina-se o código de trânsito: a teoria é, pois, o código oposto à direção de veículos, é o código da direção. Qual é portanto a direção, ou a prática, que a teoria da literatura codifica, isto é, organiza mais do que regulamenta? Não é, parece, a própria literatura (ou a atividade literária) - a teoria da literatura não ensina a escrever romances como a retórica outrora ensinava a falar em público e instruía na eloqüência, mas são os estudos literários, isto é, a história literária e a crítica literária, ou ainda a pesquisa literária.
No sentido de código, didática, ou melhor, deontologia da própria pesquisa literária, a teoria da literatura pode parecer uma disciplina nova, em todo caso ulterior ao nascimento da pesquisa literária no século XIX, quando da reforma das universidades européias, e posteriormente das americanas, segundo o modelo germânico. Mas se a palavra é relativamente nova, a coisa, em si mesma, é relativamente antiga.
Pode-se dizer que Platào e Aristóteles faziam teoria da literatura quando classificavam os gêneros literários na República e na Poética, e o modelo de teoria da literatura ainda é, hoje,
para nós, a Poética de Aristóteles. Platão e Aristóteles faziam teoria porque se interessavam pelas categorias gerais, ou mesmo universais, pelas constantes literárias contidas nas obras particulares, como por exemplo, os gêneros, as formas, os modos, as figuras. Se eles se ocupavam de obras individuais (a llíada, o Édipo Rei), era como ilustrações de categorias gerais. Fazer teoria da literatura era interessar-se pela literatura em geral, de um ponto de vista que almejava o universal.
Mas Platão e Aristóteles não faziam teoria da literatura, pois a prática que queriam codificar não era o estudo literário, ou a pesquisa literária, mas a literatura em si mesma. Procuravam formular gramáticas prescritivas da literatura, tão normativas que Platão queria excluir os poetas da Cidade [1]. Atualmente, embora 19
trate da retórica e da poética, e revalorize sua tradição antiga e clássica, a teoria da literatura não é, em princípio, normativa.
Descritiva, a teoria da literatura é, pois, moderna: supõe a existência de estudos literários, instaurados no século XIX, a partir do romantismo. Tem uma relação com a filosofia da literatura como ramo da estética que reflete sobre a natureza e a função da arte a definição de belo e de valor. Mas a teoria da literatura não é filosofia da literatura, não é especulativa
nem abstrata, mas analítica ou tópica: seu objeto são o/os discursos sobre a literatura, a crítica e a história literárias, que ela questiona, problematiza, e cujas práticas organiza. A teoria da literatura não é a polícia das letras, mas de certa forma sua epistemologia.
Nem nesse sentido é verdadeiramente nova. Lanson, o fundador da história literária francesa, na virada do século XIX para o XX, já dizia de Ernest Renan e de Émile Faguet, os críticos literários que o precederam - embora Faguet fosse seu contemporâneo na Sorbonne, Lanson o julgava ultrapassado -, que não tinham "teoria literária".5
Era uma maneira polida de lhes dizer que, a seus olhos, eram impressionistas e impostores, não sabiam o que faziam, faltava-lhes rigor, espírito científico, método. Quanto a Lanson, este pretendia ter uma teoria, o que mostra que história literária e teoria não são incompatíveis.
O apelo à teoria responde necessariamente a uma intenção polêmica, ou opositiva (crítica, no sentido etimológico do termo): a teoria contradiz, põe em dúvida a prática de outros. É útil acrescentar aqui um terceiro termo à teoria e à prática, conforme o uso marxista, mas não apenas marxista, dessas noções: o termo ideologia. Entre a prática e a teoria, estaria instalada a ideologia. Uma teoria diria a verdade de uma prática, enunciaria suas condições de possibilidade, enquanto a ideologia não faria senão legitimar essa prática com uma mentira, dissimularia suas condições de possibilidade. Segundo Lanson, aliás bem recebido pelos marxistas, seus rivais não tinham teoria, senão ideologias, isto é, idéias preconcebidas.
Assim, a teoria reage às práticas que julga ateóricas ou antiteóricas. Agindo assim, ela as institui como bodes expiatórios. Lanson, que pensava possuir, com a filologia e o positivismo histórico, uma teoria sólida, entregava-se ao humanismo tradicional de seus adversários (homens de cultura ou de bom 20
gosto, burgueses). A teoria se opõe ao senso comum. Mais recentemente, depois de uma volta da espiral, a teoria da literatura levantou-se ao mesmo tempo contra o positivismo na história literária (representado por Lanson) e contra a simpatia na crítica literária ( que havia sido representada por Faguet), assim como se levantou contra a associação freqüente dos dois (primeiro o positivismo na história do texto, depois o humanismo na interpretação), como ocorre nos austeros filólogos que, depois de um estudo minucioso das fontes do romance de
Prévost, passam sem problemas a julgamentos íntimos sobre a realidade psicológica e sobre a verdade humana de Manon, como se ela estivesse a nosso lado, uma jovem de carne e osso.
Resumamos: a teoria contrasta com a prática dos estudos literários, isto é, a crítica e a história literárias, e analisa essa prática, ou melhor, essas práticas, descreve-as, torna explícitos seus pressupostos, enfim critica-os (criticar é separar, discriminar).
A teoria seria, pois, numa primeira abordagem, a crítica da crítica, ou a metacrítica (colocam-se em oposição uma linguagem e a metalinguagem que fala dessa linguagem; uma linguagem e a gramática que descreve seu funcionamento). Trata-se de uma consciência crítica
(uma crítica da ideologia literária), uma reflexão literária (uma dobra crítica, uma self-consciousness, ou uma auto-referencialidade), traços esses que se referem, na realidade, à modernidade, desde Baudelaire e, sobretudo, desde Mallarmé.
Apresentemos logo o exemplo: empreguei uma série de termos que convém definir em si mesmos, ou elaborar melhor, para tirar deles conceitos mais consistentes, para alcançar essa consciência crítica que acompanha a teoria: literatura, depois crítica literária e história literária,
cuja distinção é enunciada pela teoria. Deixemos a literatura para o próximo capítulo e examinemos mais de perto os dois outros termos.
TEORIA, CRÍTICA, HISTÓRIA [2]
Por crítica literária compreendo um discurso sobre as obras literárias
que acentua a experiência da leitura, que descreve, interpreta, avalia
o sentido e o efeito que as obras exercem 21
sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não necessariamente cultos nem profissionais. A crítica aprecia, julga; procede por simpatia (ou antipatia), por identificação ou projeção: seu lugar ideal é o salão, do qual a imprensa é uma metamorfose, não a universidade; sua primeira forma é a conversação.
Por história literária compreendo, em compensação, um discurso que insiste nos fatores exteriores à experiência da leitura, por exemplo, na concepção ou na transmissão das obras, ou em outros elementos que em geral não interessam ao não-especialista.
A história literária é a disciplina acadêmica que surgiu ao longo do século XIX, mais conhecida, aliás, com o nome de filologia, scholarship, Wissenschaft, ou pesquisa.
Às vezes opõem-se crítica e história literárias como um procedimento intrínseco e um procedimento extrínseco: a crítica lida com o texto, a história com o contexto. Lanson
observava que se faz história literária a partir do momento em que se lê o nome do autor na capa do livro, em que se dá ao texto um mínimo de contexto. A crítica literária enuncia proposições do tipo "A é mais belo que B", enquanto a história literária afirma: "C deriva de D." Aquela visa a avaliar o texto, esta a explicá-lo.
A teoria da literatura pede que os pressupostos dessas afirmações sejam explicitados. O que você chama de literatura? Quais são seus critérios de valor?, perguntará ela aos críticos, pois
tudo vai bem entre leitores que compartilham das mesmas normas e que se entendem
por meias palavras, mas, se não é o caso, a crítica (a conversação) transforma-se logo em diálogo de surdos. Não se trata de reconciliar abordagens diferentes, mas de compreender por que elas
são diferentes.
O que você chama de literatura? Que peso você atribui a suas propriedades especiais ou a seu valor especial?, perguntará a teoria aos historiadores.
Uma vez reconhecido que os textos literários possuem traços distintivos, você os trata como documentos históricos, procurando neles suas causas factuais: vida do autor, quadro social e cultural, intenções atestadas, fontes. O paradoxo salta aos olhos: você explica pelo contexto
um objeto que lhe interessa precisamente porque escapa a esse contexto e sobrevive a ele.
A teoria protesta sempre contra o implícito: incômoda, ela é o protervus (o protestante) da velha escolástica. Ela pede 22
contas, não adota a opinião de Proust em Le Temps Retrouvé [O Tempo Redescoberto], pelo menos naquilo que diz respeito aos estudos literários: "Uma obra onde há teoria é como um objeto no qual se deixa a marca do preço."6 A teoria quer saber o preço. Não tem nada de abstrato, faz perguntas, aquelas perguntas sobre textos particulares com os quais historiadores e críticos se deparam sem cessar, mas cujas respostas são dadas de antemão. A teoria lembra que essas perguntas são problemáticas, que podem ser respondidas de diversas maneiras:
ela é relativista.
TEORIA OU TEORIAS
Empreguei, até aqui, a palavra teoria no singular, como se só houvesse uma teoria. Ora, todo mundo já ouviu falar que há teorias literárias, a teoria do senhor fulano de tal, a teoria da senhora fulana de tal. Então, a teoria ou as teorias seriam um pouco como doutrinas ou dogmas críticos, ou ideologias. Há tantas teorias quanto teóricos, como nos domínios em que a experimentação é pouco praticável. A teoria não é como a álgebra ou a geometria: o professor de teoria ensina sua teoria, o que lhe permite, como a Lanson, pretender que os outros não têm nenhuma. Perguntar-me-ão: qual é a sua teoria? Responderei: nenhuma. E é isto que dá medo: gostariam de saber qual é a minha doutrina, a fé que é preciso abraçar ao longo deste livro. Estejam tranqüilos, ou ainda mais preocupados. Eu não tenho fé - o protervus é sem fé e sem lei, é o eterno advogado do diabo, ou o diabo em pessoa: Forse tu non pensa vi ch 'io
loico fossi! Como Dante lhe faz dizer, "Talvez não pensasses que eu fosse um lógico" ("Inferno", canto XXVII, v.122-123) -, nenhuma doutrina, senão a da dúvida hiperbólica diante
de todo discurso sobre a literatura. À teoria da literatura, vejo-a como uma atitude analítica e de aporias, uma aprendizagem cética (crítica), um ponto de vista meta crítico visando interrogar, questionar os pressupostos de todas as práticas críticas (em sentido amplo), um "Que
sei eu?" perpétuo.
Evidentemente, há teorias particulares, opostas, divergentes, conflitantes - o campo, afirmei, é polêmico -, mas não vamos aderir a esta ou àquela teoria; vamos refletir de maneira analítica e cética sobre a literatura, sobre o estudo 23
literário, ou seja, sobre todo discurso - crítico, histórico, teórico - a respeito da literatura. Tentaremos ser menos ingênuos.
A teoria da literatura é uma aprendizagem da não ingenuidade. "Em matéria de crítica literária", escrevia Julien Gracq, "todas as palavras que conduzem a categorias são armadilhas".7
TEORIA DA LITERATURA OU TEORIA LITERÁRIA
Uma outra pequena distinção preliminar. Falei, nos últimos parágrafos, de teoria da literatura, não de teoria literária. Seria pertinente essa distinção? Segundo, por exemplo, o modelo
da história da literatura e da história literária (a síntese versus a análise, o quadro da literatura em oposição à disciplina filológica, como o manual de Lanson, Histoire de Ia Littérature
Française [História da Literatura Francesa], de 1895, frente à Revue d'Histoire Littéraire de Ia France, fundada em 1894). A teoria da literatura, como no manual de Wellek e Warren que traz o título em inglês, Theory of Literature [Teoria da Literatura] (1949), é geralmente
considerada um ramo da literatura geral e comparada: designa a reflexão sobre as condições da literatura, da crítica literária e da história literária; é a crítica da crítica, ou a metacrítica.
A teoria literária é mais opositiva e se apresenta mais como uma crítica da ideologia, compreendendo aí a crítica da teoria da literatura: é ela que afirma que temos sempre uma teoria e que, se pensamos não tê-Ia, é porque dependemos da teoria dominante num dado lugar e num dado momento. A teoria literária se identifica também com formalismo, desde os forma listas russos do início do século XX, marcados, na verdade, pelo marxismo. Como lembrava de Man, a teoria literária passa a existir quando a abordagem dos textos literários não é mais fundada em considerações não lingüísticas, considerações, por exemplo, históricas ou estéticas;
quando o objeto de discussão não é mais o sentido ou o valor, mas modalidades de produção de sentido ou de valor.8 Essas duas descrições da teoria literária (crítica da ideologia, análise lingüística) se fortalecem mutuamente, pois a crítica da ideologia é uma denúncia da ilusão
lingüística (da idéia de que a língua e a literatura são evidentes em si mesmas): a teoria literária expõe o código e a convenção ali onde a teoria postulava a natureza. 24
-
Infelizmente, essa distinção (teoria da literatura versus teoria literária), clara em inglês, por exemplo, foi obliterada em francês: o livro de Wellek e Warren, Theory of Literature, foi traduzido - tardiamente, como dissemos - com o título La Théorie L ittéra ire, em 1971, enquanto a antologia dos formalistas russos, de Tzvetan Todorov, foi publicada, alguns anos antes, pelo mesmo editor, com o título Théorie de ta Littérature (1966). É preciso examinar esse quiasmo para melhor nos situarmos.
Como já se terá compreendido, utilizo-me das duas tradições. Da teoria da literatura: a reflexão sobre as noções gerais, os princípios, os critérios; da teoria literária: a crítica ao bom senso literário e a referência ao formalismo. Não se trata, pois, de fornecer receitas. A teoria não é o método, a técnica, o mexerico. Ao contrário, o objetivo é tornar-se desconfiado de todas as receitas, de desfazer-se delas pela reflexão.
Minha intenção não é, portanto, em absoluto, facilitar as coisas, mas ser vigilante, suspeitoso, cético, em poucas palavras: crítico ou irônico. A teoria é uma escola de ironia.
A LITERATURA REDUZIDA A SEUS ELEMENTOS
Sobre que noções exercer, aguçar nosso espírito crítico? A relação entre a teoria e o senso comum é naturalmente conflituosa. É, pois, o discurso corrente sobre a literatura,
designando os alvos da teoria, que permite colocar melhor a teoria àprova.
Ora, todo discurso sobre a literatura, todo estudo literário está sujeito, na sua base, a algumas grandes questões, isto é, a um exame de seus pressupostos relativamente a um pequeno número de noções fundamentais. Todo discurso sobre a literatura assume posição
- implicitamente o mais das vezes, mas algumas vezes explicitamente - em relação
a estas perguntas, cujo conjunto define uma certa idéia de literatura:
- O que é literatura?
- Qual é a relação entre literatura e autor?
- Qual é a relação entre literatura e realidade?
- Qual é a relação entre literatura e leitor?
- Qual é a relação entre literatura e linguagem?
Quando falo de um livro, construo forçosamente hipóteses sobre
essas definições. Cinco elementos são indispensáveis 25
para que haja literatura: um autor, um livro, um leitor, uma língua e um referente.
A isso acrescentaria duas questões que não se situam exatamente no mesmo nível e que dizem respeito, precisamente, à história e à crítica: que hipóteses levantamos sobre a transformação,
o movimento, a evolução literária, e sobre o valor, a originalidade, a pertinência literária? Ou ainda: como compreendemos a tradição literária, tanto no seu aspecto dinâmico (a história) quanto no seu aspecto estático (o valor)?
Essas sete questões encabeçam cada capítulo do meu livro - a literatura, o autor, o mundo, o leitor, o estilo, a história e o valor -, aos quais dei títulos inspirados no senso comum, pois é
o eterno combate entre a teoria e o senso comum que dá à teoria seu sentido. Quem abre um livro tem essas noções em mente. Reformulados um pouco mais teoricamente, os quatro primeiros títulos poderiam ser os seguintes: literariedade, intenção, representação,
recepção. Em relação aos três últimos - estilo, história, valor -, parece que não há motivo para
distinguir a fala dos amadores da dos profissionais: uns e outros recorrem às
mesmas palavras.
Para cada pergunta, gostaria de mostrar a variedade de respostas possíveis, não tanto o conjunto daquelas que foram dadas na história, mas das que se fazem hoje: o projeto não é o de uma história da crítica, nem o de um quadro das doutrinas literárias. A teoria da literatura é uma lição de relativismo, não de pluralismo: em outras palavras, várias respostas são possíveis,
não compossíveis; aceitáveis, não compatíveis; ao invés de se somarem numa visão total e mais completa, elas se excluem mutuamente, porque não chamam de literatura, não qualificam
como literária a mesma coisa; não visam a diferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes objetos. Antigo ou moderno, sincrônico ou diacrônico, intrínseco ou extrínseco: não é
possível tudo ao mesmo tempo. Na pesquisa literária, "mais é menos", motivo pelo qual devemos escolher. Além disso, se amo a literatura, minha escolha já foi feita. Minhas decisões
literárias dependem de normas extraliterárias - éticas, existenciais -, que regem outros aspectos da minha vida.
Por outro lado, essas sete questões sobre a literatura não são independentes. Formam um sistema. Em outras palavras, a resposta que dou a uma delas restringe as opções que se abrem para responder às outras: por exemplo, se acentuo o 26
papel do autor, é possível que não dê tanta importância à língua; se insisto na literariedade, minimizo o papel do leitor; se destaco a determinação da história, diminuo a contribuição
do gênio etc. Esse conjunto de escolhas é solidário. É por isso que qualquer questão permite uma entrada satisfatória no sistema, e sugere todas as outras. Uma única, a intenção, por exemplo, talvez seja suficiente, para tratar de todas elas.
É por isso também que a ordem de análise dessas questões é, no fundo, indiferente: poder-se-ia tirar uma carta ao acaso e seguir a pista. Escolhi percorrê-Ias fundamentando-me numa hierarquia que corresponde, também ela, ao senso comum, o qual, em relação à literatura, pensa mais no autor do que no leitor, na matéria mais do que na maneira.
Todos os lugares da teoria serão assim, visitados, salvo, talvez, o gênero (trataremos dessa questão brevemente, quando falarmos da recepção), porque o gênero não foi uma causa célebre da teoria literária dos anos sessenta. O gênero é uma generalidade, a mediação mais evidente entre a obra individual e a literatura. Ora, por um lado, a teoria desconfia das evidências, por outro, visa aos universais.
Essa lista tem qualquer coisa de provocação, visto que nela constam, simplesmente, as ovelhas negras da teoria literária, moinhos de vento contra os quais ela se esfalfou para forjar conceitos salutares. Que não se veja aí, entretanto, nenhuma malícia! Inventariar os inimigos da teoria parece-me o melhor, o único meio, em todo o caso o mais econômico, de examiná-los com confiança, de traçar seus passos, testemunhar sua energia, torná-Ia viva, assim como ainda éindispensável, depois de mais de um século, descrever a arte moderna através das convenções que a negaram.
Enfim, talvez sejamos levados a concluir que o "campo literário", apesar das diferenças de posição e de opinião, às vezes exacerbadas, para além das querelas intermináveis que o
animam, repouse sobre um conjunto de pressupostos e de crenças partilhados
por todos. Pierre Bourdieu julgava que
“as posições assumidas com relação à arte e à literatura L..] organizam-se em pares de oposições, muitas vezes herdados de um passado polêmico e concebidos como antinomias
intransponíveis, alternativas absolutas, em termos de tudo ou nada, que estruturam o pensamento, mas também o aprisionam numa série de falsos dilemas.9 ” 27
Trata-se de arrombar essas falsas janelas, essas contradições traiçoeiras, esses paradoxos fatais que dilaceram o estudo literário; trata-se de resistir à alternativa autoritária entre a teoria
e o senso comum, entre tudo ou nada, porque a verdade está sempre no entrelugar.
28
[1] Ás vezes o escritor coloca algumas cerejas no meio do bolo, ou acorda o leitor no meio do texto com uma provocação, tal como faz aqui Compagnon.. Qualquer leitor menos atento desperta ao ler que um sábio como Platão queria excluir os poetas da República. Segundo Compagnon porque ele estava buscando "gramáticas prescritivas da literatura, normativas. Força de uma expressão desnecessária, exceto para alimentar a ira indignada do leitor, que bem pode saciado ir à procura de novas cerejas.
Talvez Compagnon esteja se referindo à : Republica, Livro X - 607a. "Quando encontrares adoradores de Homero, dizendo que este poeta foi o educador da Grécia, e que é digno de se tomar por modelo na educação,..deves concordar com eles que Homero é o maior dos poetas. Mas devemos reconhecer que, quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses... Se, porém acolheres a Musa aprazível na lírica ou na epopéia, governarão a cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio, que a comunidade considere, em todas as circustâncias, o melhor. ......É a razão que obriga-nos a excluir uma arte desta espécie. Para não nos acusarmos de rude, observamos que é antiga a diferença entre filosofia e poesia....."
De fato Platão ao excluir Homero como fonte de ensino, estava condenando o senso comum, e talvez neste sentido fazendo uma teoria da educação - veja a Educação na República. . Antes a educação baseiava-se tão somente na decoração dos versos de Homero, fora as artes da guerra. Platão propõe usar a harmonia, o ritmo, as narrativas, a geometria e a filosofia para a educação dos bons cidadãos. Não estava abandonando o belo, tanto é que a música, sua harmonia e ritmo eram essencial para que os jovens aprendessem a cultivar e reconhecer a verdade e a sabedoria. . Veja uma discussão detalhada de Ian Johnston a respeito da "poesis" em Platão.
Aristósteles aluno, porém não discípulo, de Platão não é uma continuidade, é um corte no conhecimento, na forma, no estilo, uma verdadeira revolução. São dois autores completamente diferentes, opostos - Joyce disseca seus estilos no Episódio 9 de Ulysses na biblioteca, e fecha com Aristóteles.
Que Aristóteles estava fazendo teoria da literatura, ou coisa parecida, em sua Poética, classificando os gêneros e as funções não se discute. De fato ele necessitava de normatizar uma gramática, até então consolidada na tradição, em grande parte oral.
Porém a rusga com Platão e os Poetas (e não com a poesia, o belo), é de outra natureza. É uma ação política, difícil de entender nos dias de hoje depois de Dante. Na República Platão analisa o poeta Homero, e o trágico Eurípedes em dois livros. No livro III, pode-se afirmar que Platão foi o primeiro crítico literário que deixou alguma coisa escrito. Trechos da Odisséia e da Ilíada são ali analisados com a precisão dos críticos modernos.
Decorar faz um mal irreparável ao raciocínio, que o digam os fundamentalistas. Os grandes escritores judeus só produziram obras primas - para citar poucos: Spinoza, Heine, Canetti, Marx quando deixaram de recitar o Torá. Sacrificaram por nós, os gentios, abandonando a rota do paraíso e entregando-nos o ouro da reflexão, tal como Prometeu - amigo dos homens, Spinoza foi acorrentado às portas da sinagoga
[2] Uma ilustração de Teoria da Literatura (um pouco borrada), Crítica e História Literária.