quarta-feira, agosto 25, 2004

o demônio da Teoria - Compagnon - O que restou

introdução
o que restou de nossos amores



"Para o pobre Sócrates, só havia o Demônio da proibição; o meu é um grande afirmador, o meu é um Demônio de ação, um Demônio de combate.
Baudelaire, "Espanquemos os pobres!

Ce pauvre Socrate n'avait qu'un Démon prohibiteur; le mien est un grand affirmateur, le mien est un Démon d'action, un Démon de combat. "


Parodiando uma célebre frase: "Os franceses não têm a mente teórica." Pelo menos até a explosão dos anos sessenta e setenta. A teoria literária viveu então seu momento de glória, como se a fé do prosélito lhe houvesse, de repente, permitido resgatar quase um século de atraso num átimo de segundo. Os estudos literários franceses não conheceram nada semelhante ao formalismo russo, ao círculo de Praga, ao New
Criticism anglo-americano, sem falar da estilística de Leo Spitzer nem da topologia de Ernst Robert Curtius, do antipositivismo de Benedetto Croce nem da crítica das variantes de Gianfranco Contini, ou ainda da escola de Genebra e da crítica da consciência, ou mesmo do antiteorismo deliberado de F. R. Leavis e de seus discípulos de Cambridge. Para contrabalançar todos esses movimentos originais e influentes que
ocuparam a primeira metade do século XX na Europa e na América do Norte, só poderíamos citar, na França, a "Poética" de Valéry, segundo o título da cátedra que ocupou no Colégio de França (1936) - efêmera disciplina, cujo progresso foi logo interrompido pela guerra, depois pela morte -, e talvez as sempre enigmáticas Fleurs de Tarbes [Flores de Tarbes], de Jean Paulhan (941), tateando confusamente a definição
de uma retórica geral, não instrumental, da língua: esse "Tudo é retórica", que a desconstrução deveria redescobrir em Nietzsche, por volta de 1968. O manual de René Wellek e Austin Warren, Theory of Literature [Teoria da Literatura],pág. 11
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publicado nos Estados Unidos em 1949, encontrava-se disponível (nos fins dos anos sessenta), em espanhol, japonês, italiano, alemão, coreano, português, dinamarquês, servo-croata, grego moderno, sueco, hebreu, romeno, finlandês e gujarati, mas não em francês, idioma no qual só foi publicado em 1971, com o título de Ia Théorie Iittéraire [A Teoria Literária], um dos primeiros da coleção "Poétique", nas Éditions du Seuil, sem nunca ter feito parte da coleção de bolso. Em 1960, pouco antes de morrer, Spitzer atribuía esse atraso e esse isolamento franceses a três fatores: um velho sentimento de superioridade ligado a uma tradição literária e intelectual contínua e eminente; o espírito geral dos estudos literários, sempre marcado pelo positivismo científico do século XIX, à procura das causas; a predominância da prática escolar de explicação de texto, isto é, de uma descrição ancilar das formas literárias, impedindo o desenvolvimento de métodos formais mais sofisticados. Acrescentaria de bom grado, mas isso é evidente, a ausência de uma lingüística e de uma filosofia da linguagem comparáveis às que invadiram as universidades de língua alemã ou inglesa, desde Gottlob Frege, Bertrand Russel, Ludwig Wittgenstein e Rudolf Carnap, assim como a fraca incidência da tradição hermenêutica transformada, entretanto, na Alemanha, inteiramente, por Edmund Husserl e Martin Heidegger.
Em seguida, as coisas mudaram rapidamente - aliás, começaram a se mover, no momento em que Spitzer fazia aquele diagnóstico severo -, a tal ponto que, por uma muito curiosa reversão que leva a refletir, a teoria francesa viu-se, momentaneamente, alçada à vanguarda dos estudos literários no mundo, um pouco como se tivéssemos, até então, recuado para saltar melhor, a menos que um tal fosso, subitamente transposto, tenha permitido inventar a pólvora com uma inocência e um ardor tais que deram a ilusão de um avanço, durante esses miríficos anos sessenta, que se estenderam, de fato, de 1963, fim da guerra da Argélia, até 1973, com o primeiro choque petroleiro. Por volta de 1970, a teoria literária estava no auge e exercia um imenso atrativo sobre os jovens da minha geração. Sob várias denominações - "nova crítica", "poética", "estruturalismo", "semiologia", "narratologia" -, ela brilhava em todo seu esplendor. Quem viveu esses anos feéricos só pode se lembrar deles com nostalgia. Uma corrente Pág. 12
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poderosa arrastava a todos nós. Naquele tempo, a imagem do estudo literário, respaldada pela teoria, era sedutora, persuasiva, triunfante.
Esse não é mais, exatamente, o quadro. A teoria institucionalizou-se, transformou-se em método, tornou-se uma pequena técnica pedagógica, freqüentemente tão árida quanto a explicação de texto, que ela atacava, então, energicamente. A estagnação parece inscrita no destino escolar de toda teoria. A história literária, jovem disciplina ambiciosa e atraente do final do século XIX, conheceu a mesma triste evolução, e a nova crítica não escapou disso. Depois do frenesi dos anos sessenta e setenta, durante os quais os estudos literários franceses alcançaram e mesmo ultrapassaram os outros no caminho do formalismo e da textualidade, as pesquisas teóricas não conheceram maiores desenvolvimentos na França. Seria o caso de incriminar o monopólio da história literária sobre os estudos franceses, o qual a nova crítica não teria conseguido abalar em profundidade, mas apenas disfarçar provisoriamente? A explicação - de Gérard Genette - parece insuficiente, pois a nova crítica, mesmo que não tenha derrubado os muros da velha Sorbonne, implantou-se solidamente na Educação nacional, sobretudo no ensino secundário. Talvez por isso mesmo ela tenha se tornado rígida. É impossível, hoje, passar num concurso sem dominar os distinguos sutis e o jargão da narratologia. Um candidato que não saiba dizer se o pedaço de texto que tem sob os olhos é "homo-" ou "heterodiegético", "singulativo" ou "iterativo", de "focalização interna" ou "externa" não é admitido, assim como outrora era necessário distinguir um anacoluto de uma hipálage, e saber a data de nascimento de Montesquieu. Para compreender a singularidade do ensino superior e da pesquisa na França, é preciso ter sempre em mente a dependência histórica da universidade em relação aos concursos de admissão de professores ao ensino secundário. É como se nos tivéssemos provido, antes de 1980, de tudo o que é suficiente como teoria para renovar a pedagogia: um pouco de poética e de narratologia para explicar o verso e a prosa. A nova crítica, assim como, algumas gerações antes, a história literária de Gustave Lanson, viu-se rapidamentereduzida a algumas receitas, truques e astúcias para brilhar nos concursos. O impulso teórico estancou-se desde que forneceu uma certa ciência de apoio à sacrossanta explicação de texto.
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A teoria foi, na França, um fogo de palha, e a aspiração que Barthes formulava em 1969 - "a nova crítica deve tornar-se muito rapidamente um novo adubo, para depois, fazer outra coisa"! - parece não ter sido realizada. Os teóricos dos anos sessenta e setenta não tiveram sucessores. O próprio Barthes foi canonizado, o que não é a melhor forma de manter viva e ativa uma obra. Outros mudaram e se entregaram a trabalhos muito distanciados de seus primeiros amores; alguns, como Tzvetan Todorov ou Genette, orientaram-se para a ética ou a estética. Muitos voltaram-se para a velha história literária pelo viés da redescoberta de manuscritos, como revela a moda da crítica dita genética. A revista Poétique, que existe ainda, publica essencialmente exercícios de epígonos; o mesmo se dá com Littérature, outra instituição pós-68, sempre eclética, acolhendo o marxismo, a sociologia e a psicanálise. A teoria acomodou-se e não é mais o que era: está aí assim como todos os séculos literários estão aí, como todas as especialidades convivem na universidade, cada uma em seu lugar. Encontra-se compartimentada, inofensiva, espera os estudantes à hora certa, sem outro intercâmbio com outras especialidades nem com o mundo a não ser por intermédio desses estudantes que vagueiam de uma disciplina a outra. Não está mais viva que as outras disciplinas, na medida em que não é mais ela que diz por que e como seria necessário estudar a literatura, qual é a pertinência, a provocação atual do estudo literário. Ora, nada a substituiu nesse papel, aliás, não mais se estuda tanto a literatura.
"A teoria voltará, como tudo, e seus problemas serão redescobertos no dia em que a ignorância for tão grande que só produzirá tédio." Philippe Sollers anunciava esse retorno desde 1980, ao prefaciar a reedição de Théorie d'Énsemble [Teoria do Conjunto] - ambicioso volume publicado durante o outono que se seguiu a maio de 1968 e cujo título foi extraído das matemáticas - e ao reunir, talvez com uma suspeita de "terrorismo intelectual" - como Sollers reconheu posteriormente _,2 as assinaturas de Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida, Julia Kristeva e todo o grupo de Tel Quel, o melhor da teoria então no seu ápice. A teoria ia, então, de vento em popa, dava vontade de viver. "Desenvolver a teoria para não se atrasar na vida", havia decretado Lénine, e Louis Althusser invocava-o para denominar Pág. 14
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"Teoria" à coleção que dirigia na Maspero. Pierre Macherey publicou aí, em 1966, ano guia do movimento estruturalista, Pour une Théorie de Ia Production Littéraire [Por uma Teoria da Produção Literária], obra na qual o sentido marxista da
teoria - crítica da ideologia e ascensão da ciência - e o
sentido formalista - análise dos procedimentos lingüísticos - entravam em entendimento com o domínio da literatura. A teoria era crítica e mesmo polêmica ou militante - como no título inquietante do livro de Boris Eikhenbaum em 1927, Littérature, Théorie, Critique, Polémique [Literatura, Teoria, Crítica, Polêmica] em parte traduzido por Tzvetan Todorov
na sua antologia dos formalistas russos, Théorie de Ia Litté
rature [Teoria da Literatura], em 1966 -, mas ambicionava também fundar uma ciência da literatura. "O objeto da teoria", escrevia Genette em 1972, "seria não apenas o real, mas também a totalidade do virtualliterário".3 O formalismo e o marxismo eram seus dois pilares para justificar a pesquisa dos invariantes ou dos universais da literatura, para considerar as obras individuais mais como obras possíveis do que como obras reais, como meros exemplos do sistema literário subjacente, mais cômodos para atingir a estrutura do que as obras desatualizadas, e apenas potenciais.
Se essa teoria de caráter ambíguo - ao mesmo tempo marxista e formalista - já tinha saído da moda em 1980, o que dizer hoje? Já fomos suficientemente atingidos pela ignorância e pelo tédio para desejarmos novamente a teoria ?

2 comentários:

Antonio Brito from Brazil disse...

O demônio de Sócrates, de Baudelaire e de Compagnon.

Talvez esta reflexão de Baudelaire tenha inspirado Compagnon.
O original de baudelaire é:
"En même temps, j'entendis une voix qui chuchotait à mon oreille, une voix que je reconnus bien; c'était celle d'un bon Ange, ou d'un bon Démon, qui m'accompagne partout. Puisque Socrate avait son bon Démon, pourquoi n'aurais-je pas mon bon Ange, et pourquoi n'aurais-je pas l'honneur, comme Socrate, d'obtenir mon brevet de folie, signé du subtil Lélut et du bien avisé Baillarger?
Il existe cette différence entre le Démon de Socrate et le mien, que celui de Socrate ne se manifestait à lui que pour défendre, avertir, empêcher, et que le mien daigne conseiller, suggérer, persuader. Ce pauvre Socrate n'avait qu'un Démon prohibiteur; le mien est un grand affirmateur, le mien est un Démon d'action, un Démon de combat. "
e pode ser encontrado em :http://baudelaire.litteratura.com/?rub=oeuvre&srub=pop&id=187

Le Spleen de Paris
Repris en 1864 sous le titre Petits poèmes en prose
retour à l'accueil de l'oeuvre
retour au choix de l'oeuvre
Assommons les Pauvres !

O que Baudelaire queria dizer com existe uma "diferença entre o demônio de Sócrates e o meu. "

Afinal o que é o demônio de Sócrates ?
Platão em Apologia de Sócrates , 31d , coloca a seguinte reflexão de Sócrates.
"Apologia de Platao - a socrates
às vezes em algum lugar, existe alguma coisa de divina e espiritual que vem até eu, a mesma coisa que Meletus ridicularizou em sua acusação. Eu percebi isto desde minha infância; é um tipo de voz que me acompanha, e quando surge sempre com força me faz recuar naquilo que estou pensando em fazer, porém nunca impele-me a avançar. É isto que se opôs ao meu envolvimento na política."

31d] "at many times and places, is that something divine and spiritual comes to me, the very thing which Meletus ridiculed in his indictment. I have had this from my childhood; it is a sort of voice that comes to me, and when it comes it always holds me back from what I am thinking of doing, but never urges me forward. This it is which opposes my engaging in politics. "

O original grego e em inglês pode ser encontrado em :
http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext?doc=Perseus:text:1999.01.0169:div1=Apol.:section=31d

No contexto original de Sócrates-Platão, daemon (não confundir com o demônio dos cristãos), era uma inspiração interior, um "super-ego", uma inspiração e um exercício mental que obrigava-o a refletir sobre suas ações.
Este modelo, de pensar, tomou outra forma com Plutarco e com os alemães, (eigen), e é utilizado em ciências exatas (o demônio de Maxwell) para indicar um pensamento livre, avulso, sem nenhuma conotação com a realidade sensível ou a prática,talvez neste sentido de livre pensar sobre a literatura seja a fonte do Título de Compagnon.

Porém Baudelaire, apresenta um daemon diferente do estóico Sócrates, que encontra na sua "voz interior" um argumento contra a ação prática, em particular uma ação política.
O Demônio de Baudelaire instiga a ação, a transformação, e o combate , talvez político, porém com as armas das letras, e neste sentido ele é o oposto ao de Sócrates.
O ditado aposto por Compagnon é um gancho para a explicação de como na França a teoria Literária foi tão pouco refletido, desde os tempos de Baudelaire, até a revolução estudantil de 1968, quando os demônios da ação política se soltaram.

por favor complete ou critique este comentário

Valdemar Santos disse...

como seria esse estudo de outra forma? que outros atributos poderiam ser inseridos nessa pequisa? fica a questão.