sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Machado de Assis - Crônicas - Bons Dias1889 - II

Bons Dias, de Machado de Assis 1889

1889

[84] [13 de janeiro]

BONS DIAS!

Eu, se fosse gatuno, recolhia-me à casa, abria mão de vício tão hediondo, e ia estudar o hipnotismo. Uma vez amestrado, saía à rua com um ofício honesto, e passava o resto dos meus dias comendo tranqüilamente sem remorsos nem cadeia.
Foi o que fiz agora sem ser gatuno; gastei dias metido no estudo desta ciência nova. Tivesse a menor inclinação para ratoneiro, e nunca mais iria às algibeiras dos outros, aos quintais, às vitrines, nem ao famoso conto do vigário. Faria estudos práticos da ciência.
Dava, por exemplo, com vivos, e lesto, dizia comigo:- Este é o Visconde de Figueiredo. Metia-o por sugestão no primeiro corredor, ele mesmo fechava a porta, por sugestão, e eu dizia-lhe, como Gassner, que empregava o latim nas suas aplicações hipnóticas:

— Veniat agitatio brachiorum.

O visconde agitava os braços. Eu em seguida bradava-lhe:

—Dê-me V. Ex.a as notas que tiver aí no bolso, o relógio, os botões de ouro e qualquer outra prenda de estimação.
S. Ex.a desfazia-se de tudo paulatinamente: eu ia recebendo devagar; guardando tudo, dizia-lhe com persuasão e força:
— Agora mando que se esqueça de tudo, que passe alguns minutos sem saber onde está, que confunda esta rua com outra; e só daqui a uma hora vá almoçar no restaurant do costume, à cabeceira da mesma mesa, com seus habituais amigos.
Depois, à maneira do mesmo velho Gassner, fechava a experiência em latim:
—Redeat ad se!
S. Ex.a tornava a si; mas já eu ia na rua, tranqüilo, enquanto ele tinha de gastar algum tempo, explicando-se, sem consegui-lo.
Seriam os meus primeiros estudos práticos; mas imagine-se o que poderia sair de tais estréias. Casas de penhores, ourives, joalherias. Subia ainda; ia aos tribunais ganhar causas, ia às câmaras legislativas obter votos, ia ao governo, ia a toda parte. De cada negócio (e nisto poria o maior apuro científico), compunha uma longa e minuciosa memória, expondo as observações feitas em cada paciente, a maior ou menor docilidade, o tempo, os fenômenos de toda a espécie; e por minha morte deixaria esses escritos ao Estado.
Por exemplo, este caso das meninas envenenadas de Niterói — ...Estudaria aquilo com amor; primeiro o menino que aviou a receita. Indagaria bem dele se era menino ou boticário. Ao saber que era só menino, mas que com cinco anos e a graça de Deus, esperava chegar a boticário, e, talvez, a médico da roça, — mostrar-lhe-ia que a fortuna protege sempre os nobres esforços do homem; e assim também que, para salvar mil criaturas, é preciso ter matado cinqüenta, pelo menos. Em seguida, tendo lido que o vidro do remédio fora mandado esconder por um facultativo, achá-lo-ia, antes da polícia, por meio hipnótico, e este era o meu negócio. Exposto o vidro, na Rua do Ouvidor, a dois tostões por pessoa... E verdade que tudo poderia já estar esquecido, ou por causa do assassinato do Catete, ou até por nada.
Tudo feito, chegaria a morrer um dia, e mui provavelmente São Pedro, chaveiro do céu, não me abriria as portas por mais que lhe dissesse que os meus atos eram puras experiências científicas. Contar-lhe-ia as minhas virtudes; ele abanaria a cabeça. Pois aí mesmo aplicaria o novo processo.
—Veniat agitatio brachioram!
São Pedro, mestre dos mestres na língua eclesiástica, obedeceria prontamente à minha intimação hipnótica, e agitaria os braços. Mas como, então, não via nada, eu passaria para o lado de dentro; e logo que lhe bradasse de dentro: —Redeat ad se, ele acordaria e me perdoaria em nome do Senhor, desde que transpusera o limiar do céu.
Esta é a diferença dos dois mistérios póstumos: quem entra no inferno perde as esperanças, quem entra no céu conserva-as integralmente. Servate ogni speranza, o voi ch'entrate!

Boas noites.

[85] [21 janeiro]

BONS DIAS!
Vi não me lembra onde...
É meu costume; quando não tenho que fazer em casa. ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar à cidade de São Sebastião. matar o tempo. Não conheço melhor ofício, mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um homem, uma tabuleta, qualquer coisa basta a entreter o espirito, e a gente volta para casa "lesta e aguda", como se dizia em não sei que comédia antiga.
Naturalmente, cansadas as pernas, meto-me no primeiro bond, que pode trazer-me à casa ou à Rua do Ouvidor, que é onde todos moramos. Se o bond é dos que têm de ir por vias estreitas e atravancadas, torna-se um, verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, pára diante de uma carroça que despeja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um cigarro: o condutor desce também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.
Ninguém sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a idéia sai com dificuldade. creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a idéia fica integra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também.
Ainda anteontem, aproveitando uma meia hora de bond parado, lembrou-me não sei como o incêndio do club dos Tenentes do Diabo. Ruminei os episódios todos, entre eles os atos de generosidade tia parte das sociedades congêneres; e fiquei triste de não estar naquela primeira juventude, em que a alma se mostra capaz de sacrifícios e de bravura. Todas essas dedicações dão prova de uma solidariedade rara, grata ao coração.
Dois episódios, porém, me deram a medida do que valho. quando rumino. Toda a gente os leu separadamente; o leitor e eu fomos os únicos que os comparamos.
Refiro-me, primeiramente, à ação daqueles sócios de outro club, que correram à casa que ardia, e, acudindo-lhes à lembrança os estandartes, bradaram que era preciso salvá-los. "Salvemos os estandartes!" e tê-lo-iam feito, a troco da vida de alguns. se não fossem impedidos a tempo. Era loucura, mas loucura sublime. Os estandartes são para eles o símbolo da associação, representam a honra comum, as glórias comuns, o espírito que os liga e perpetua.

Esse foi o primeiro episódio. Ao pé dele temos o do empregado que dormia, na sala. Acordou este, cercado de fumo, que o ia sufocando e matando. Ergueu-se, compreendeu tudo, estava perdido, era preciso fugir. Pegou em si e no livro da escrituração e correu pela escada abaixo.
Comparai esses dois atos, a salvação dos estandartes e a salvação do livro, e tereis uma imagem completa do homem. Vós mesmos que me ledes sois outros tantos exemplos de conclusão. Uns dirão que o empregado, salvando o livro, salvou o sólido; o resto é obra de sirgueiro. Outros replicarão que a contabilidade pode ser reconstituída. mas que o estandarte, símbolo da associação, é também a sua alma; velho e chamuscado, valeria muito mais que o que possa sair agora' novo, de uma loja. Compará-lo-ão à bandeira de uma nação, que os soldados perdem no combate, ou trazem esfarrapada e gloriosa.
E todos vós tereis razão; sois as duas metades do homem formais o homem todo... Entretanto, isso que aí fica dito está longe da sublimidade com que o ruminei. Oh! se todos ficássemos calados! Que imensidade de belas e grandes idéias! Que saraus excelentes! Que sessões de Câmara! Que magnificas viagens de bond!
Mas por onde é que eu tinha principiado? Ah! uma coisa que vi, sem saber onde. ..
Não me lembra se foi andando de bond; creio que não. Fosse onde fosse, no centro da cidade ou fora dela. Vi, à porta de algumas casas, esqueletos de gente' postos em atitudes joviais. Sabem que o meu único defeito é ser piegas; venero os esqueletos, já porque o são, já porque o não sou. Não sei se me explico. Tiro o chapéu às caveiras; gosto da respeitosa liberdade com que Hamlet fala à do bobo Yorick. Esqueletos de mostrador, fazendo guifonas, sejam eles de verdade ou não. é coisa que me aflige. Há tanta coisa gaiata por esse mundo, que não vale a pena ir ao outro arrancar de lá os que dormem. Não desconheço que esta minha pieguice ia melhor em verso, com toada de recitativo ao piano: Mas é que eu não faço versos; isto não é verso:
Venha o esqueleto, mais tristonho e grave Bem como a ave, que fugiu do além...
Sim, ponhamos o esqueleto nos mostradores, mas sério, tão sério como se fosse o próprio esqueleto do nosso avô, por exemplo... Obrigá-lo a uma polca, habanera, lundu ou cracoviana... Cracoviana? Sim, leitora amiga, é uma dança muito antiga, que o nosso amigo João, cá de casa, executa maravilhosamente, no intervalo dos seus trabalhos. Quando acaba, diz-nos sempre, parodiando um trecho de Shakespeare: "Há entre a vossa e a minha idade, muitas mais coisas do que sonha a vossa vã filosofia."
Boas noites.

[86] [16 fevereiro]

BONS DIAS!
Deus seja louvado! Choveu. . . Mas não é pela chuva em si mesma que o leitor me vê aqui cantando e bailando; é por outra coisa. A chuva podia ter melhorado o estado sanitário da cidade, sem que me fizesse nenhum particular obséquio. Fez-me um; é o que eu agradeço a Providência Divina.
Já se pode entrar num bond, numa loja ou numa casa, bradar contra o calor e suspirar pela chuva, sem ouvir este badalo:
— A folhinha de Ayer dá chuva para 20 de fevereiro.
Pelo lado moral, era isto um resto um resto das torturas judiciárias de outro tempo. Pelo lado estético, era a mais amofinadora de todas as cegaregas deste mundo:
— Oh! Não pude dormir esta noite! Onde irá isto parar? Nem sinais de chuva, um céu azul, limpo, feroz, eternamente feroz.
— A folhinha de Ayer só dava chuva lá para 20 de fevereiro, acudia logo alguém.
Às vezes, apesar de minha pacatez proverbial, tinha ímpetos de bradar, como nos romances de outro tempo: "Mentes pela gorja, vilão!"
E é o que mereciam todos os alvissareiros de Ayer; era agarrá-los pelo pescoço, derrubá-los, joelho no peito e sufocá-los, até botarem cá para fora à língua e a alma. Pedaços de asnos!
Nem ao menos tiveram o mérito de acertar. Afligiam sem graça nem verdade.
Habent sua fata libelli! As folhinhas de Ayer, como anúncios meteorológicos, estão a expirar. Só este golpe recente é de levar couro e cabelo. Agora podem prever as maiores tempestades do mundo que não deixarei de sair a pé com sapatos rasos e meias de seda, se tanto for preciso para mostrar o meu desprezo.
Ayer é um dos velhos da minha infância. Oh! Bons tempos da salsaparilha de Ayer e de Sands, dois nomes imortais, que eu cuidei ver mortos no fim de uma década.
Não seriam amigos, eu não sou tão jovem como o apregoam alguns. Eu assisti a todo o ciclo do Xarope do Bosque. Conheci- o no tempo em que começou a curar; era um bonito xarope significado nos anúncios por meio de uma árvore e uma deusa- ou outra coisa, não sei bem como era.
Curava tudo: à proporção que os curados iam espalhando que as folhinhas de Ayer só davam chuvas... Perdão, enganei-me; iam espalhando que estavam curados, a fama do xarope ia crescendo e as suas obras eram o objeto das palestras nos ônibus. A fama cresceu, a celebridade acendeu todas as suas luminárias. Jurava-se pelo Xarope do Bosque como um cristão jura por Nosso Senhor. Contavam-se maravilhas; pessoas mortas voltavam à vida, com uma garrafa debaixo do braço, vazia.
Chegou ao apogeu. Como todos os impérios e repúblicas deste mundo principiou a decair; era menos buscado, menos nomeado. O rei dos xaropes desceu ao ponto de ser o lacaio dos xaropes e lacaio mal pago; belas curas sua nobres aliadas, quando viram no tão baixo estado, foram levar os seus encantos a outros príncipes. Ele ainda resistiu; reproduzia nos jornais a árvore e a moça, e repetia todos os seus méritos, aqui e fora daqui; mas a queda ia continuando. Pessoas que lhe deviam a vida, não sei por que singular ingratidão, preferiam agora o arsênico, os calomelanos e outras drogas de préstimo limitado. O xarope foi caindo, caindo, caindo até morrer.
Não falo nisto sem lágrimas. Se por esse tempo, aproveitando a morte do Xarope do Bosque, tivesse inventando um xarope de Cidade, estava agora com a bolsa repleta. Teria palácio em Petrópolis, coches, alazões, um tetro, e o resto. A antítese dos nomes era a primeira recomendação. Se o do Bosque já não cura, diriam os fregueses, busquemos o da Cidade. E curaria, podem crer, tanto como o outro, ou um pouco menos. Há sempre fregueses... Ora, eu, que não alimentei jamais grandes ambições, nem de que juntasse uns três mil contos, dava o xarope aos sobrinhos. Pode ser que já agora estivesse com outro ( Deus lhe fale n’alma). Paciência; Babilônia caiu; caiu Roma. Caiu Nínive, caiu Cartago. Ninguém mais repete esta abominável scie:
— A folhinha de Ayer só dá chuva lá para 20 de fevereiro.
Boas Noites.

[87] [13 fevereiro]

BONS DIAS!

O diabo que entenda os políticos! Toda a gente aqui me diz, que o meio de obter câmaras razoáveis é acabar com as eleições por distritos, na quais, à força de meia dúzia de votos, um paspalhão ou perverso fica deputado. Dizem agora telegramas franceses, que o governo e a maioria da Câmara dos Deputados, para evitar o mesmo mal, vão adotar justamente a eleição por distritos. Entenderam? Eu estou na mesma.
Felizmente, dei com uma dessas criaturas que o céu costumava enviar para esclarecer os homens, a qual me disse que Pascal era um sonhador. Não gosto de calembour, mas não pude evitar este: "Há de me perdoar, o Pascoal é confeiteiro." A pessoa não fez caso; continuou dizendo que Pascal era um sonhador, porque o que achava estravagante, é que é natural: verdade aqui, erro além. Sabia eu por que é que lá adotaram o que para nós é ruim? Era para escapar ao cesarismo. Sabia eu o que era cesarismo?
— Não, senhor.
— Cesarismo vem de César.
— Farâni? perguntei eu, e confesso que sem o menor desejo de trocadilho.
— Não.
— Zama? Conheço um César Zama.
— Cala-se, homem, ou ponha-se fora. Não estou para aturar cérebros fracos, nem pessoas malcriadas, porque, se é grande impolidez interromper a gente para dizer uma verdade, quanto mais uma asneira. César Zama! César Farâni!
— Já sei: César Cantu...
— Vá para o diabo, que o ature. Quando quiser saber as coisas ouça calado, entendeu? Ora essa! Cantu, Farâni, Zama... Já viu o cometa?
—Há algum cometa?
—Há, sim, senhor, vá ver o cometa, aparece às 3 horas da manhã, e de onde se vê melhor é do morro do Neco, à esquerda. Tem um grande rabo luminoso. Vá, meu amigo; quem não entende das coisas, não se mete nelas. Vá ver o cometa.
Fiquei meio jururu, porque o principal motivo que me levara a procurar a dita pessoa, não era aquele, mas outro. Era saber se existia a Sociedade Protetora dos Animais.
Afinal, prestes a ir ver o cometa, tornei atrás e fiz a pergunta. Respondeu-me que sim, que a Sociedade Protetora dos Animais existia, mas que tinha eu com isso? Expliquei-lhe que era para mim uma das sociedades mais simpáticas. Logo que ela se organizou, fiquei contente, dizendo comigo que, se Inglaterra e outros países possuía Novidades tais por que não a teríamos nós? Prova de sentimentos finos, justos, elevados; o homem estende a caridade aos brutos.
Parece que ia falando bem, porque a pessoa não gostou, e interrompeu-me, bradando que tinha pressa; mas eu ainda emiti várias frases asseadas, e citei alguns trechos literários para mostrar que também sabia cavalgar livros. Afinal, confiei-lhe o motivo da pergunta: era para saber se, havendo na Câmara Municipal nada menos de três projetos ou planos para a extinção dos cães, a Sociedade Protetora tinha opinado sobre algum deles, ou sobre todos.
A pessoa não sabia, nem quis meter a sua alma no inferno asseverando fatos que ignorava. Saberia eu o que se passava em Quebec? Respondi que não. Pois era a mesma coisa. A sociedade e Quebec eram idênticas para os fins da minha curiosidade. Podia ser que os três projetos já a sociedade houvesse examinado quatro ou mesmo nenhum; mas, como sabê-lo?

Conversamos ainda um pouco. Fiz-lhe notar que os burros, principalmente os das carroças e bonds, declaram a quem os quer ouvir, que ninguém os protege, a não ser o pau (nas carroças) e as rédeas (nos bonds). Respondeu-me que o burro não era propriamente um animal, mas a imagem quadrúpede do homem. A prova é que, se encontramos a amizade no cão, o orgulho no cavalo, etc., só no burro achamos filosofia. Não pude conter-me e soltei uma risada. Antes soltasse um espirro! A pessoa veio para mim, com os punhos fechados, e quase me mata. Quando voltei a mim, perguntei humildemente:
—Bem; se a Sociedade Protetora dos Animais não protege o cão nem o burro, o que é que protege?
—Então não há outros animais? A girafa não é animal? A girafa, o elefante, o hipopótamo, o camelo, o crocodilo, a águia. O próprio cavalo de Tróia, apesar de ser feito de madeira, como levava gente na barriga, podemos considerá-lo bicho. A Sociedade não há de fazer tudo ao mesmo tempo. Por ora o hipopótamo, depois virá o cão.
— Mas é que o...
— Homem, vá ver o cometa, morro do Neco, à esquerda.
—Às três horas?
—Da madrugada; boas noites.

[88] [27 de fevereiro]

BONS DIAS!

Ei-lo que chega... Carnaval à porta!... Diabo! aí vão palavras que dão idéia de um começo de recitativo ao piano; mas outras posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que falei como um Cícero.
Carnaval à porta. Já lhe ouço os guizos e tambores. Aí vêm os carros das idéias... Felizes idéias, que durante três dias andais de Carro! No resto do ano ides a pé, ao sol e à chuva, ou ficais no tinteiro, que é ainda o melhor dos abrigos. Mas lá chegam os três dias, quero dizer os dois, porque o de meio não conta; lá vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e passear.
Nem isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, único cronológico, marcado, combinado e acertado, me é dado saborear este ano. Não falo por causa da febre amarela; essa vai baixando. As outras febres são apenas companheiras. . . Não; não é essa a causa.
Talvez não saibam que eu tinha uma idéia e um plano. A idéia era uma cabeça de Boulanger, metade coroada de louros, metade forrada de lama. O plano era metê-la em um carro, e andar. E vede bem, vós que sois idéias, vede se o plano desta idéia era mau. Os que esperam do general alguma coisa, deviam aplaudir; os que não esperam nada, deviam patear; mas o provável é que aplaudissem todos, unicamente por este fato: porque era uma idéia.
Mas a falta de dinheiro ( prosa, em língua púnica) não me permite pôr esta idéia na rua. Sem dinheiro, sem ânimo de o pedir a alguém, e, com certeza, sem ânimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador. Vou para a turbamulta das ruas e das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.
Já alguém me aconselhou que fosse vestido de tabelião. Redargüi que tabelião não traz idéia; e depois, não há diferença sensível entre o tabelião e o resto do universo. Disseram-me que, tanto há diferença, que chega a havê-la entre um tabelião e outro tabelião.
— Não leu o caso do tabelião que foi agora assassinado, não sei em que vila do interior? Foi assassinado diante de cinqüenta pessoas, de dia e na rua, sem perturbação da ordem pública. Veja se há de nunca acontecer coisa igual ao Cantanheda...
—Mas que é que fez o tabelião assassinado?
—É o que a notícia não diz, nem importa saber. Fez ou não fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente político. Chamou nariz de César à falta de nariz de alguma influência local. É a diferença dos tabeliães da roca e da cidade. Você passa pela Rua do Rosário, e contempla a gravidade de todos os notários daqui. Cada um à sua mesa, alguns de óculos, as pessoas entrando as cadeiras rolando, as escrituras começando. .. Não falam de política; não sabem nunca da queda dos ministérios, senão à tarde, nos bonds: e ouvem os partidários como os outorgantes, sem paixão, nem por um, nem por outro. Não é assim na roca. Vista-se você de tabelião da roca, com um tiro de garrucha varando-lhe as costelas.
—Mas como hei de significar o tiro?
—Isto agora é que é idéia; procure uma idéia. Há de haver uma idéia qualquer que significa um tiro. Leve à orelha uma pena, na mão uma escritura para mostrar que é tabelião; mas como é tabelião político, tem de exprimir a sua opinião política. E outra idéia Procure duas idéias, a da opinião e a do tiro.
Fiquei alvoroçado, o plano era melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda, e agora no tempo. para arranjar as idéias. Estava nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda havia idéia melhor.
—Melhor?
—Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de julho.
—Trivial.
—Vai ver se é trivial. Não se trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense e o resto, não senhor. Trata-se de copiar São Fidélis . .
— Copiar São Fidélis?
— O povo de São Fidélis tomou agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que não recebe o subdelegado que para lá mandaram. Compreende bem, que esta reprodução de 1789, em ponto pequeno, cá pelo bairro é uma boa idéia.

—Sim, senhor, é idéia... Mas então tenho de escolher entre a morte pública do tabelião e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?

—Eram duas idéias.

— Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, não sei mais qual?

— Isso então é que era um cacho de idéias... Falta-lhe só a berlinda.

—Falta-me prosa, que é como os soldados de Aníbal chamavam ao dinheiro. Uba sacá prosa nanupacatu. Em português: "Falta dinheiro aos heróis de Cartago para acabar com os romanos." Ao que respondia Aníbal: Tunga loló. Em português: Boas noites.

[89] [7 março]

BONS DIAS!

Pego na pena com bastante medo. Estarei falando francês ou português? O Sr. Dr. Castro Lopes, ilustre latinista brasileiro, começou uma série de neologismos, que lhe parecem indispensáveis para acabar com palavras e frases francesas. Ora, eu não tenho outro desejo senão falar e escrever corretamente a minha língua; e se descubro que muita coisa que dizia até aqui, não tem foros de cidade mando esse ofício à fava, e passo a falar por gestos.

Não estou brincando. Nunca comi croquetes, por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei filet de boeuf, é certo, mas com restrição mental de estar comendo lombo de vaca. Nem tudo, porém, se presta a restrições; não poderia fazer o mesmo com as bouchées de dames, por exemplo, porque bocados de senhoras dá idéia de antropofagia, pelo equívoco da palavra. Tenho um chambre de seda, que ainda não vesti, nem vestirei por mais que o uso haja reduzido a essa simples forma popular a robe de chambre dos franceses.

Entretanto há nomes que, vindo embora do francês, não tenho dúvida em empregar, pela razão de que o francês apenas serviu de veículo; são nomes de outras línguas. E todo o mal não é a origem estrangeira, mas francesa. O próprio Dr. Castro Lopes se padecer de spleen, não há de ir pedir o nome disto ao general Luculo; tem de sofrê-lo em inglês. Mas é inglês. E assim que ele aprova xale, por ver do persa; conquanto, digo eu. a alguns parece que o recebemos de Espanha. Pode ser que esta mesma o recebesse de França, que, confessadamente, o recebeu de Inglaterra, para onde foi das partes do Oriente. Schawl, dizem os bretões; a França não terá feito mais que tecê-lo, adoçá-lo e exportá-lo. Deslindem o caso, e vamos aos neologismos.

Cache-nez, é coisa que nunca mais andará comigo. Não é por me gabar; mas confesso que há tempos a esta parte entrei a desconfiar que este pedaço de lã não me ficava bem. Um dia procurei ver se não acharia outra coisa, e andei de loja em loja. Um dos lojistas disse-me, no estilo próprio do ofício:

—Igual, igual não temos; mas no mesmo sentido, posso servi-lo.

E, dizendo-lhe eu que sim, o homem foi dentro, e voltou com um livro português, antigo, e ali mesmo me leu isto, sobre as mulheres persianas: "O rosto, não descobrem nunca fora de casa, trazendo-o coberto com um cendal ou guarda-cara...

— Este guarda-cara é que lhe serve, disse ele. Cache-nez ou guarda-cara é a mesma coisa a diferença é que um é de seda e o outro de lã. É livro de jesuíta, e tem dois séculos de composição ( 1663). Não é obra de francelho ou tarelo, como dizia o Filinto Elisio.

Sorriu-me a troca, e estive a realizá-la, quando me apareceu o focáler romano, proposto pelo Sr. Dr. Castro Lopes; e bastou ser romano, para abrir mão do outro que era apenas nacional.

O mesmo se deu com preconício outro neologismo. O Sr. Dr. Castro Lopes compôs este, porque a todos os homens de letras que falam a língua portuguesa, foi sempre manifesta a dificuldade de achar um termo equivalente à palavra francesa reclame .

Confesso que não me achei nunca em tal dificuldade, e mais sou relojoeiro. Quando exercia o ofício (que deixei por causa da vista fraca), compunha anúncios grandes e pomposos. Não faltava quem me acusasse de fazer reclame para vender os relógios. Ao que eu respondia sempre:

—Faça-me o favor de falar português. Reclamo é o que eu emprego, e emprego muito bem; porque é assim que se chama o instrumento com que o caçador busca atrair as aves; às vezes, é uma ave ensinada para trazer as outras ao laço. Se não quer reclamo, use chamariz, que é a mesma coisa. E olhe que isto não está em livros velhos de jesuítas, anda já nos dicionários.

Contentava-me com aquilo; mas, desdepreconício abri mão de outro termo, que era o nosso, por este alatinado.

Nem sempre, entretanto, fui severo com artes francesas. Pince-nez é coisa que usei por largos anos, sem desdouro. Um dia, porém. queixando-me do enfraquecimento da vista, alguém me disse que talvez o mal viesse da fábrica. Mandei logo ( há uns seis meses) saber se havia em Portugal alguma luneta-pênsil das que inventara Camilo Castelo Branco, há não sei quantos anos. Responderam-me que não. Camilo fez uma dessas lunetas, mas a concorrência francesa não consentiu que a indústria nacional pegasse.

Fiquei com o meu pince-nez que, a falar verdade, não me fazia mal, salvo o suposto de me ir comendo a vista, e um ou outro apertão que me dava no nariz. Era francês, mas, não cuidando a indústria nacional de o substituir, não havia eu de andar às apalpadelas. Vai senão quando, vejo anunciados os nasóculos do nosso distinto autor. Lá fui comprar um, já o cavalguei no nariz, e não me fica mal. Daqui a pouco, ver-me-ão andar pela rua, teso como um petit-maitre... Perdão, petimetre, que é já da nossa língua e o nosso povo.

Boas noites.

[90] [19 março]

BONS DIAS!

Faleceu em Portugal o Sr. Jácome de Bruges Ornelas Ávila Paim da Câmara Ponce de Leão Homem da Costa Noronha Borges de Sousa e Saavedra, 2.° Conde da Praia da Vitória, 2.° Visconde de Bruges.

Quarta-feira, na igreja do Carmo, diz-se uma missa por alma do ilustre finado, e quem a manda dizer é um seu amigo—nada mais que amigo gratíssimo à memória do finado. Nenhum nome, nada um amigo; é o que leio nos anúncios.

Quem quer sejas tu, homem raro, deixa-me aperta-te as mãos de longe. e não te faço um discurso. para não te molestar; mas é o que tu merecias, e mereces. Singular anônimo, tu perdes um amigo daquele tamanho, e não lhe aproveitas a memória para cavagá-lo. Não fazes daqueles títulos e non1es a tua própria condecoração. Não chocalhas o finado à tua porta, como um reclamo, para atrair e dizer depois à gente reunida: — Eu, Fulano de Tal, mando dizer uma missa por alma de n eu grande amigo Jácome de Bruges Ornelas Ávila Paim da Câmara Porce de Leão Homem da Costa Noronha Borges de Sousa e Saavedra, 2.° Conde da Praia da Vitória, 2.° Visconde de Bruges.

Mas em que beco vives tu, varão modesto? Onde te metes? Com quem falas? Qual é o teu meio? Com muito menos grandeza, não escapava nem escapa um morto daqueles às celebrações póstumas. Ah! (dizia-me um fino repórter, quando faleceu o Barão de Cotegipe) se eu fosse a tomar nota dos mais íntimos amigos do barão, concluiria que ele nunca os teve de outra qualidade. E é assim, nobre anônimo; um morto ilustre é um naco de glória que não se perde; é além disso uma ocasião, e às vezes única, de superar os contemporâneos.

Podia ir quarta-feira à missa, com o fim único de perguntar quem a manda dizer; o sacristão mostrava-te de longe, e eu via-te, conhecia-te; mas não vou, não quero. Prefiro crer que é tudo uma ilusão, uma fantasmagoria, que não existes, que és uma hipótese. Dado que não, ainda assim não quero conhecer-te a vista da pessoa seria a maior das amarguras. Deixa-me a idealidade; posso imaginar-te a meu gosto, um asceta, um ingênuo, um desenganado, um filósofo.

Não sei se tens pecados. Se os tens, por mortais que sejam, crê que esta só ação te será contada no céu, por todos eles, e ainda fica5 com um saldo. Lá estarei antes de ti, provavelmente, e direi tudo a São Pedro, e ele te abrirá largas as portas da glória eterna. Caso não esteja, fala-lhe desta maneira:

- Pequei, meu amado Santo, e pequei muito, reincidi no pecado, como todas as criaturas que lá estão embaixo, porque as tentações são grandes e freqüentes, e a vida parece mais curta para o bem que para o mal. Aqui estou arrependido...

—Foste absolvido'?

—Não, não cheguei a confessar-me por ter morrido de um acesso pernicioso fulminante que o Barão do Lavradio diz não saber o que é.

— Bem, praticaste algum grande ato de virtude?

—Não me lembra.. .

—Vê bem, o momento é decisivo. A modéstia é bela, mas não deve ir ao ponto de ocultar a verdade, quando se trata de salvar a alma. Estás entre duas eternidades. Deste algumas esmolas?

—Saberá Vossa Santidade que sim.

—Que mais?

— Mais nada.

—Foste grato aos amigos?

—Fui, a um principalmente, meu amigo e grande amigo. Mandei-lhe dizer uma missa. no Rio de Janeiro, onde então me achava, quando ele morreu no Funchal.

—Chamava-se na terra...

— Jácome de Brugcs Ornelas Ávila Paim da Câmara Ponce de Leão Homem da Costa Noronha Borges de Sousa e Saavedra, 2.o. Conde da Praia da Vitória. 2.° Visconde de Bruogs.

Aqui o príncipe dos apóstolos sorrirá para si. e dirá provavelmente: —Já sei: convidaste os outros com teu nome por inteiro.

—Não, não fiz isso.

São Pedro incrédulo:

— Como. . .?. . . Não. . .?. . . Só as iniciais. . .

—Nem as iniciais; disse só que era um amigo grato ao finado.

— Entra, entra... Como te chamas tu?

—Deixe-me Vossa Santidade guardar ainda uma vez o incógnito. Bons noites.

[91] [22 março]

BONS DIAS!

Antes do último neologismo do Sr. Castro Lopes tinha eu suspeita, nunca revelada de que o fim secreto do nosso eminente latinista, era pôr-lhe a falar volapuk. Não vai nisto o menor desrespeito à memória de Cícero nem de Horácio, menos ainda ao seu competente intérprete neste pais. A suspeita vinha da obstinação com que o digno professor ia bater à porta latina, antes de saber se tínhamos em nossa própria casa a colher ou o garfo necessário às refeições. Essa teima podia explicar-se de dois modos: — ou desdém (não merecido) da língua portuguesa ou então o fim secreto a que me referi, e que muito bem se pode defender.

Com efeito no dia em que eu, pondo os meus nosóculos, comprar um focáler e um lucivelo, elo, para fazer preconício na Concião, se não falar volapuk, é que estou falando cartaginês. E contudo é puro latim. Era assim até aqui; confesso, porém, que o último neologismo—digo mal, — por ocasião do último galicismo, perdi a suspeita do fim secreto. Dessa vez o autor veio à nossa prata de casa, não lhe tenho pedido outra coisa.

Não há neologismo propriamente, já porque a palavra desempeno existia na língua, bastando apenas aplicá-la, já porque no sentido de à-plomb lá a pôs no seu dicionário o nosso velho patrício Morais. Contudo, foi bom serviço lembrá-la. Às vezes, uma senhora, não sai bem vestida de casa por esquecimento de certa manta de rendas, que estava para um canto. Acha-se a manta, põe-se a pessoa nada pediu emprestado e sai catita.

Contudo, surge uma dúvida. Hão de ter notado que eu sou o homem mais cheio de dúvidas que há no mundo. A minha dúvida é se tendo já em casa o desempeno, para substituir o à-plomb, não ser difícil arrancar este galicismo do uso, — quando menos do parlamento,—onde ele é empregado em frases como estas: —"Mas o à-plomb do nobre ministro..." '`Não é com esse à-plomb insolente de S. Ex.a, é com princípios que se governam as nações..."

Para acudir ao mal, à dificuldade de extrair pela raiz esse dente francês, não poderiam usar a mesma palavra. com a forma portuguesa'' Se à-plomb indica a posição tesa e desempenada da pessoa, dizendo nós aprumo, não teremos dado a nossa fisionomia ao galicismo, para incorporá-lo no idioma, já não digo para sempre, mas temporariamente? Deste modo facilitava-se mais a cura, embora fosse mais longa. Desmamava-se o galicismo.

Note-se que não estou inventando nada. Rebelo da Silva, homem de boas letras escreveu esse vocábulo aprumo, e dizem que também anda em dicionários. Lá diz o Rebelo: "Respondendo . .. com o aprumo do homem seguro de ter cumprido etc. etc." Vá lá, desmamemos o galicismo, e demos- lhe depois um bom bife de desempeno verdade que podemos vir a ficar com as duas palavras, para a mesma idéia, coisa só comparável a te; duas calças, quando uma só veste perfeitamente um homem.

Mas confiemos no futuro; a Gazeta, que tem intenções de chegar ao segundo centenário da Revolução Francesa, aceitará o esforço generoso de alguém que bote o intruso para fora a pontapés. Desconfio que ele já anda em livros de outros autores; mas não afirmo nada. a não ser que, há muitos anos quando me encontrava com um saudoso amigo e bom filósofo, dizia-me sempre:

--Então, donde vem com esse aprumo?

Tempos! Tempos' O século expira; começo a ouvir a alvorada do outro.

Ecco ridente in cielo

Giá spunta la bella aurora...

Boas noites.

[92] [30 março]

BONS DIAS!

Quantas questões graves se debatem neste momento! Só a das farinhas de Pernambuco e da moeda bastam para escrever duas boas séries de artigos. Mas há também a das galinhas de Santos,—aparentemente mínima, mas realmente ponderosa, desde que a consideremos

do lado dos princípios. As galinhas cresceram de preço com a epidemia, chegando a cinco e creio que sete mil-réis. Sem isso não há dieta.

De relance, faz lembrar o caso daquele sujeito contado pelo nosso João (veja Almanaque do Velhinho, ano 5.°, 1843) que, dando com um casebre a arder, e uma velha sentada e chorando, perguntou a esta:

- Boa velha, esta casinha é sua?

-- Senhor, sim, e o triste buraco em que morava; não tenho mais nada, perdi tudo.

—Bem; deixa-me acender ali o meu cigarro?

E o homem acendeu o cigarro na calamidade particular. Mas os dois casos são diferentes; no de Santos rege a lei econômica, e contra esta não há quebrar a cabeça. Diremos, por facécia, que é acender dois ou três charutos na calamidade pública; mas em alguma parte se hão de acender os charutos. Ninguém obsta a que se vendam as galinhas por preço baixo, ou até por nada. mas então é caridade, bonomia, desapego, misericórdia, — coisas alheias aos princípios e às leis que são implacáveis.

Não examinei bem o negócio das farinhas pernambucanas, mas não tenho medo que os princípios sejam sacrificados.

Quanto aos das libras esterlinas, não tendo nenhuma no bolso, não me julgo com direito de opinar. Contudo, meteu-se em cabeça que não nos ficava mal possuir uma moeda nossa, em vez de dar curso obrigatório à libra esterlina. Um velho amigo, sabedor destas matérias, acha este modo de ver absurdo; eu, apesar de tudo, teimo na idéia, por mais que me mostrem que daqui a pouco ou muito lá se pode ir embora o ouro, nacional ou não.

Mas, principalmente, o que vejo nisto é um pouco de estética. Tem a Inglaterra a sua libra. a França o seu franco, os Estados Unidos o seu dólar, por que não teríamos nós nossa moeda batizada? Em vez de designá-la por um número, e por um número ideal — vinte mil-réis — Por que lhe não poremos um nome –cruzeiro — por exemplo? Cruzeiro não é pior que outros, e tem a vantagem de ser nome e de ser nosso. Imagino até o desenho da moeda; e de um lado a efígie imperial, do outro a constelação. . . Um cruzeiro, cinco cruzeiros. vinte cruzeiros. Os nossos maiores tinham os dobrões os patacões, os cruzados, etc., tudo isto era moeda tangível, mas vinte mil-réis... Que são vinte mil-réis? Enfim, isto já me vai cheirando a neologismo. Outro oficio.

Prefiro expandir a minha dor, a minha compaixão... Oh! mas compaixão grande, profunda, dessas que nos tornam melhores, que nos levantam deste mundo baixo e cruel, que nos fazem compartir das dores alheias. J'ai mal dans ta poitrine, escreveu um dia a boa Sevigné à filha adoentada, e fez muito bem, porque me ensinou assim um modo fino e pio de falar ao mais lastimável escrivão dos nossos tempos, ao escrivão Mesquita. Mesquita j'ai mal dans ta poitrine

Não te conheço, Mesquita; não sei se és magro, ou gordo, alto ou baixo; mas para lastimar um desgraçado não é preciso conhecer as suas proporções físicas. Sei que és escrivão; sei que leste o processo Bíblia, composto de mil e tantas folhas, em voz alta, perante o tribunal de jurados, durante horas e horas. Foi o que me disseram os jornais, leste e sobreviveste. Também eu sobrevivi a uma leitura, mas esta era feita por outro, numa sociedade literária, há muitos anos; um dos oradores, em vez de versos, como se esperava' sacou do bolso um relatório, e agora o ouvirás. Tenho ainda diante dos olhos as caras com que andávamos todos nas outras salas, espiando pelas portas, a ver se o homem ainda lia: e ele lia. O papel crescia-lhe nas mãos. Não era relatório, era solitária; quando apareceu a cabeça, houve um Te Deum landamus nas nossas pobres almas.

O mesmo foi contigo, Mesquita; crê que ninguém te ouviu. Os poucos que começaram a ouvir-te, ao cabo de uma hora mandaram-te ao diabo, e pensaram nos seus negócios. Mil e tantas folhas! Duvido que o processo Parnell seja tão grosso como o do testamento da Bíblia. A própria Bíblia (ambos os testamentos) não é tão grande, embora seja grande. Não haverá meio de reduzir essa velha praxe a uma coisa útil e cômoda? Aviso aos legisladores.

Boas noites.

[93] [20 abril]

BONS DIAS!

A principal vantagem dos estudos de língua, é que com eles não perdemos a pele, nem a paciência, nem, finalmente. as ilusões, como acontece aos que se empenham na política, essa fatal Dalila (deixem-me ser banal), a cujos pés Sansão perdeu o cabelo, e André Roswein a vida.

—André, tu ainda hás de fazer com que eu acabe os dias num convento, diz Carnioli ao infeliz Roswcin.

Nunca repetirei isto ao ilustre latinista, que ultimamente emprega os seus lazeres em expelir barbarismos e compor novas locuções. Língua, tanto não é Dalila, que e o contrário; não sei se me explico. Podemos errar, mas, ainda errando, a gente aprende.

Agora mesmo. ao sair da cama, enfiei um chambre. Cuidei estar composto, sem escândalo. Não ignorava (tanto que já o disse aqui mesmo) que aquele vestido, antes de passar a fronteira, era robe de chambre; ficou só chun2bre. Mas como vinha de trás. os velhos que conheci não usavam outra coisa, e o próprio Nicolau Tolentino. posto que mestre-escola, já o enfiou nos seus versos, pensei que não era caso de o desbatizar. Nunca mandei embora uma caleça só por vir de calèche; o mais que faço, é não dar gorjeta ao automedonte. vulgo cocheiro.

Imaginem agora o meu assombro, ao ler o artigo em que Q nosso ilustre professor mostra. a todas as luzes, que chambre é vocábulo condenável por ser francês. Antes de acabar o artigo, atirei para longe a fatal estrangeirismo, e meti-me num paletó velho, sem advertir que era da mesma fábrica. A ignorância é a mãe de todos os vícios.

Continuei a ler, e vi que o autor permite o uso da coisa, mas com outro nome, o nome é recló, "segundo diziam (acrescenta) os nossos maiores".

Com efeito, se o nossos maiores chamavam de rocló ao chambre, melhor é empregar o termo de casa, em vez de ir pedi-lo aos vizinhos. O contrário é desmazelo. Chamei então o meu criado – que é velho e minhoto - disse-lhe que daqui em diante, quando lhe pedisse o rocló, devia trazer-me o chambre. O criado pôs as mãos às ilhargas, e entrou a rir como um perdido. Perguntei-lhe por que se ria, e repeti-lhe a minha ordem.

- Mas o patrão há de me perdoar se lhe digo que não entendo.

Então o chambre agora é rocló?

—Sim, que tem?

— É que lá na terra rocló é outra coisa, e um capote curto estreito e de mangas. Parece-me tanto com chambre, como eu me pareço com o patrão, e mais não sou feio...

—Não; é impossível.

- Mas se lhe digo que é assim mesmo; é um capote. Eu até servi a um homem, lá em Lisboa (Deus lhe fale na’alma!) que usava as duas coisas, - o chambre em casa, de manhã; e, à noite, quando saía a namorar, ia com o seu rocló às costas, manguinhas enfiadas.

— Inácio, bradei levantando-me, juras-me, pelas cinzas de teu pai, que isso é verdade?

— Juro, sim, senhor. O patrão até ofende com isso ao seu velho criado. Pois então é preciso que jure? Ouviu nunca de mim alguma mentira...Tudo por causa de um rocló e de um chambre. É coisa certa que a ignorância da língua e o amor da novidade dão certo sabor a vocábulos inventados ou descabidos. Mas como fazê-los, sem citar o depoimento do meu velho minhoto, que não tem autoridade? Estava nisso, quando dei um grito, assim:

—Ah!

Dei o grito. Tinha achado o segredo da substituição do nome. Com efeito, rocló vem do francês roquelaure, designação de um capote. Portugal recebeu de França o capote e o nome, e ficou com ambos, mas foi modificando o nome. Tal qual aconteceu com robe de chambre. A mudança proposta agora no artigo a que me refiro, ficaria sem sentido, se não fosse intenção do autor, suponho eu, curar a dentada do cão com o pêlo do mesmo cão. Similia simibilbus curantur.

[94] [7 junho]

BONS DIAS!

Não gosto que me chamem profeta de fatos consumados; pelo que, apresso-me em publicar o que vai suceder, enquanto o Conselho de Estado se acha reunido no paço da cidade. Verdade seja, que o meu mérito é escasso e duvidoso; devo o principal dos prognósticos ao espírito de Nostradamus, enviado pelo meu amigo José Basílio Moreira Lapa, cambista, proprietário, pai de um dos melhores filhos deste mundo, vítima do Monte Pio e de um reumatismo periódico.

Lapa está naquele período do espiritismo em que o homem, já inclinado ao obscuro, dispõe de razão ainda clara e penetrante, e pode entreter conversações com os espíritos. Há, entretanto, uma lacuna nessa primeira fase: é que os espíritos acodem menos prontamente, e a prova é que desejando eu consultar Vasconcelos, Vergueiro ou o Padre Feijó, como pessoas de casa, não foi possível ao meu amigo Lapa fazê-las chegar à fala; só consegui Nostradamus. Não é pouco, há mestres que não o alcançariam nunca.

A segunda fase do espiritismo é muito melhor. Depois de quatro ou cinco anos (prazo da primeira), começa a pura demência. Não é vagarosa nem súbita, um meio-termo, com este característico: o espírita, à medida que a demência vai crescendo, atira-se-lhe mais rápido. O último salto nas trevas dura minuto e meio a dois minutos. Há casos excepcionais de cinco e dez minutos, mas só em climas frios e muito frios, ou então nas estações invernosas. Nos climas quentes e durante ó verão, o mais que se terá visto, é cair em três minutos.

Não se entenda, porém, que esta queda é apreciável por qualquer pessoa, só o pode ser por alienistas e de grande observação. Com efeito, para o vulto não há diferença; desde o princípio da alienação mental (isto é, começado o segundo prazo do espiritismo, que é depois de quatro ou cinco anos. como ficou dito), o espirita está perdido a olhos vistos; os atos e palavras indicam o desequilíbrio mental; não há ilusão a tal respeito. Conversa-se com eles; raros compreendem logo em princípio o sol e a lua; mostram-se todos afetuosos leais e atentos. Mas o transtorno cerebral é claro. Toda a gente vê que fala a doentes.

Entretanto, (mistério dos mistérios! ) é justamente assim e principalmente depois do último salto nas trevas, que os espíritos vagabundos ou penantes acodem ao menor aceno, não menos que os de pessoas celebres, batizadas ou não.

Tem-se calculado que, dos espíritos evocados durante um ano, 28 por cento o foram por espíritas ainda meio sãos (primeira fase): 72 por cento pertencem aos mentecaptos. Alguns estatísticos chegam a conceder aos últimos 79 por cento; mas parece excessivo.

Não importa ao nosso caso a porcentagem exata; basta saber que, para a melhor evocação e mais fácil troca de idéias, é preferível o maníaco ao são, e o doido varrido ao maníaco. Nem pareça isto maravilha: maravilha será. mas de legítima estirpe. Montaigne, mui apreciado por um dos nossos primeiros senadores e por este seu criado, dizia com aquela agudeza que Deus lhe deu: C'est un grand ouvrier de miracles que l'esprit humain! Os milagres do espiritismo são tais, a rigor é o espírito humano que faz o seu ofício.

Eu chegaria a propor, se tivesse autoridade científica, um meio de desenvolver esta planta essencialmente espiritual. Estabelecera por lei os casamentos espíritas, isto é, em que ambos os cônjuges fossem examinados e reconhecidos como inteiramente entrados na segunda fase. Os filhos desses casais trariam do berço o dom especial, em virtude da transmissão. Quando algum, escapando pela malhas dessa lei natural (todos as têm) chegasse a simples mediocridade, paciência; os restantes, confinando na idiotia e no cretinismo (com perdão de quem me ouve), preparariam as bases de um excelente século futuro.

Venhamos ao nosso Lapa. Evocado Nostradamus, vi claramente o que ele referiu ao evocador. Em primeiro lugar, a maioria do Conselho de Estado é contrária à dissolução da Câmara dos Deputados, que alguns dizem incorretamente (explicou ele) "dissolução das câmaras". Sairá o gabinete de 10 de março. É convidado o Sr. Correia, depois o Sr. Visconde do Cruzeiro, depois novamente o Sr. Correia, e o Sr. Visconde de Vieira da Silva. Este, apesar de enfermo, tentará organizar um gabinete que concilie as duas partes do Partido Conservador; não o conseguirá; será chamado o Sr. Saraiva, que não aceita, sobe o Sr. Visconde de Ouro Preto e estão os liberais de cima.

Boas noites.

[95] [13 agosto]

BONS DIAS!

Dizia-me ontem um homem gordo. . . para que ocultá-lo?. . Lulu Sênior:

—Você não pode deixar de ser candidato à câmara temporária. Um homem dos seus merecimentos não deve ficar à toa, passeando o triste fraque da modéstia pelas vielas da obscuridade. Eu, se fosse magro, como você, é o que fazia, mas as minhas formas atléticas pedem evidentemente o Senado; ]á irei acabar estes meus dias alegres. Passei o cabo dos quarenta; vou a Melinde buscar piloto que me guie pelo oceano Índico, até chegar à terra desejada...

Já se viam chegados junto à terra,

Que desejada já de tantos fora.

— Bem, respondi eu, mas é preciso um programa; é preciso dizer alguma coisa aos eleitores; pelo menos de onde venho e para onde vou. Ora, eu não tenho idéias, nem políticas nem outras.

— Está zombando!

—Não, senhor, juro por esta luz que me alumia. Na distribuição geral das idéias.. . Talvez você não saiba como é que se distribuem as idéias, antes da gente vir a este mundo. Deus mete alguns milhões delas num grande vaso de jaspe, correspondente às levas de almas que têm de descer. Chegam as almas; ele atira as idéias aos punhados; as mais ativas apanham maior número, as moleironas ficam com um pouco mais de uma dúzia, que se gasta logo, em pouco tempo; foi o que me sucedeu.

—Mas trata-se justamente de suprimi-las; não as ter é meio caminho andado. Tem lido as circulares eleitorais?

—Uma ou outra.

— Aí está porque você anda baldo ao naipe; não lê nada, ou quase nada, os jornais passam-lhe pelas mãos à toa, e quer ter idéias. Há opiniões que eu ouço às vezes, e fico meio desconfiado; corro às folhas da semana anterior, e lá dou com elas inteirinhas, pois as circulares, se nem todas são originais, são geralmente escritas com facilidade, algumas com vigor, com brilho e... Umas falam de ficar parado, outras de andar um bom pedaço, outras de correr, outras de andar para trás...

— Justamente. Que hei de escolher entre tantos alvitres?

— Um só.

— Mas qual?

- De tantos homens que falaram aos eleitores, um só teve para mim a intuição política; "Conhecido dos meus amigos (escreveu o Sr. Dr. Nobre, presidente da Câmara Municipal), julgo-me dispensado de definir a minha individualidade política." Tem você amigos?

— Alguns.

— Tem muitos. Bota para fora essa morrinha da modéstia. Você não terá idéias, mas amigos não lhe faltam. Eu tenho ouvido coisas a seu respeito, que até me admira, é verdade. Já vi baterem-se dois sujeitos por sua causa. Vinham num bond ao pé de mim. Um disse que o encontrara nesse dia de fraque cor de rapé, o outro que também o vira, mas que o fraque tirava mais a cor de vinho. O primeiro teimou, o segundo não cedeu, até que um deles chamou ao outro pedaço d'asno; o outro retorque-lhe, não lhe digo nada, engalfinharam-se e esmurraram-se à grande. Eu nunca me benzi com um sacrifício destes. Vamos, amigos não Lhe faltam.

— Pois sim; e depois?

— Depois é o que escreveu o candidato. Conhecido dos seus amigos, que necessidade tem você de definir-se? É o mesmo que dar um chá ou um baile, e distribuir à entrada o seu retrato em fotografia. Não se explique; apareça. Diga que deseja ser deputado, e que conta com os seus amigos.

— Só isso?

— Ó palerma, eles conhecem-te, mas é preciso visitá-los. A maior parte dos amigos não votam sem visita. A questão é esta? O eleitor tem três fases; está na segunda, em que a cédula é considerada um chapéu que ele não tira sem o outro tirar primeiro o seu chapéu de verdade. Se houver intimidade, ainda podes dizer brincando: "Ó Cunha, tira o chapéu." Mas o teu há de estar na mão.

— Bem, se é só isso, estou eleito.

— Isso, e amigos.

— E amigos, justo.

— Não te definas, eles conhecem-te; procura-os. Quando o filhinho de algum vier à .sala, pega nele, assenta-o na perna; se o menino meter o dedo no nariz, acha-lhe graça. E pergunta ao pai como vai a senhora; afirma que tens estado para lá ir, mas as bronquites são tantas em casa. . . Elogia-lhe as bambinelas. Não ofereças charuto, que pode parecer corrupção; mas aceita-lhe o que ele te der. Se for quebra-queixo, pergunta-lhe interessado onde é que os compra.

— Já se vê, em cada casa a mesma cantilena. Uma só música, embora com palavras diversas. O eleitor pode ser um ruim poeta. . .

— Justamente; leva-lhe decorado o último soneto, um primor.

— Compreendi tudo. Definição é que nada, visto que são meus amigos Compreendi tudo. Posso oferecer a minha gratidão?

— Podes; toda a questão é ir ao encontro do sentimento do eleitor, isto é, que ele te faz um favor votando; não escolhe um representante dos seus interesses. Anda vai-te embora e volta-me deputado.

Boas noites.

[96] [22 agosto]

Quem nunca invejou, não sabe o que é padecer. Eu sou uma lástima. Não posso ver uma roupinha melhor em outra pessoa, que não sinta o dente da inveja morder-me as entranhas. E uma comoção tão ruim, tão triste, tão profunda, que dá vontade de matar. Não há remédio para esta doença. Eu procuro distrair-me nas ocasiões; como não posso falar, entro a contar os pingos de chuva, se chove ou os basbaques que andam pela rua, se faz sol; mas não passo de algumas dezenas. O pensamento não me deixa ir avante. A roupinha melhor faz-me foscas, a cara do dono faz-me caretas...

Foi o que me aconteceu, depois da última vez que estive aqui. Há dias, pegando numa folha da manhã, li uma lista de candidaturas para deputados por Minas, com seus comentos e prognósticos. Chego a um dos distritos, não me lembra qual, o nome da pessoa, e que hei de ler? Que o candidato era apresentado pelos três partidos, liberal, conservador e republicano.

A primeira coisa que senti, foi uma vertigem. Depois, vi amarelo. Depois, não vi mais nada. As entranhas doíam-me, como se um facão as rasgasse, a boca tinha um sabor de fel, e nunca mais pude encarar as linhas da notícia. Rasguei afinal a folha, e perdi os dois itens, mas eu estava pronto a perder dois milhões, contando que aquilo fosse comigo.

Upa ! que caso único. Todos os partidos armados uns contra os outros no resto do império, naquele ponto uniam-se e depositavam sobre a cabeça de um homem os seus princípios. Não faltará quem ache tremenda a responsabilidade do eleito, - porque a eleição, em tais circunstancias, é certa; cá para mim é exatamente o contrário. Dêem-me dessas responsabilidades, e verão se me saio delas sem demora, logo na discussão do voto de graças.

- Trazido a esta Câmara (diria eu) nos paveses de gregos e troianos, e não só dos gregos que amam o colérico Aquiles, filho de Peleu, como dos que estão com Agamenon, chefe dos chefes. posso exultar mais que nenhum outro, porque nenhum outro é, como eu, a unidade nacional. Vós representais os vários membros do corpo; eu sou o corpo inteiro, completo. Disforme, não; não monstro de Horácio, por quê? Vou dizê - lo.

E diria então que ser conservador era ser essencialmente liberal, e que no uso da liberdade, no seu desenvolvimento, nas suas mais amplas reformas, estava a melhor conservação. Vede uma floresta! (exclamaria, levantando os braços). Que potente liberdade! e que ordem segura! A natureza, liberal e pródiga na produção, é conservadora por excelência na harmonia em que aquela vertigem de troncos, folhas e cipós, em que aquela passarada estrídula, se unem para formar a floresta. Que exemplo às sociedades! que lição aos partidos!

O mais difícil parece que era a união dos princípios monárquicos e dos princípios republicanos; puro engano. Eu diria: 1.°, que jamais consentiria que nenhuma das duas formas de governo se sacrificasse por mim; eu é que era por ambas; 2.°, que considerava tão necessária uma como outra, não dependendo tudo senão dos termos, assim podíamos ter na monarquia a república coroada, enquanto que a república podia ser a liberdade no trono, etc., etc.

Nem todos concordariam comigo; creio até que ninguém, ou concordariam todos, mas cada um com uma parte. Sim, o acordo pleno das opiniões só uma vez se deu abaixo do sol, há muitos anos, e foi na assembléia provincial do Rio de Janeiro. Orava um deputado cujo nome absolutamente me esqueceu, como o de dois, um liberal, outro conservador, que virgulavam o discurso com apartes, - os mesmos apartes. A questão era simples.

O orador, que era novo, expunha as suas idéias políticas. Dizia que opinava por isso ou por aquilo. Um dos apartistas acudia: é liberal. Redargüía o outro: é conservador. Tinha o orador mais este e aquele propósito. É conservador, dizia o segundo, é liberal, teimava o primeiro. Em tais condições, prosseguia o novato, é meu intuito seguir este caminho. Redargüía o liberal: é liberal; e o conservador: é conservador. Durou este divertimento três quartos de colunas do jornal do Comércio. Eu guardei um exemplar da folha para acudir às minhas melancolias, mas perdi-o numa das mudanças de casa.

Oh! não mudeis de casa! Mudai de roupa, mudai de fortuna, de amigos, de opinião, de criados, mudai de tudo, mas não mudeis de casa! Boas noites.

[97] [29 agosto]

Hão de fazer-me esta justiça, ainda os meus mais ferrenhos inimigos: é que não sou curandeiro, eu não tenho parente curandeiro não conheço curandeiro, e nunca vi cara, fotografia ou relíquia, sequer, de curandeiro. Quando adoeço não é de espinhela caída, - coisa que podia aconselhar-me a curandeira; é sempre de moléstias latinas ou gregas. Estou na regra; pago impostos, sou jurado, não me podem argüir a menor quebra de dever público.

Sou obrigado a dizer tudo isso, Como uma profissão de fé, porque acabo de ler o relatório médico acerca das drogas achadas em casa do curandeiro Tobias. Saiu hoje; é um bom documento. Falo também porque outras muitas coisas me estimulam a falar, como dizia o curandeiro-mor, Mal das Vinhas, chamado, que já lá está no outro mundo. Falo ainda, porque nunca vi tanto curandeiro apanhado,- o que prova que a indústria é lucrativa.

Pelo relatório se vê que Tobias é um tanto Monsieur Jourdain que falava em prosa sem o saber; Tobias curava em línguas clássicas. Aplicava, por exemplo, solanum argentum, certa erva, que não vem com outro nome, possuía umas cinqüenta gramas de aristologia appendiculata, que dava aos clientes; é a raiz de mil-homens. Tinha porém, umas bugigangas curiosas, esporões de galo, pés de galinha

[29 agosto]

secos, medalhas, pólvora e até um chicote feito de rabo de raia, que eu li rabo de saia, coisa que me espantou, porque estava, estou e morrerei na crença de que rabo de saia é simples metáfora. Vi depois o que era rabo de raia. Chicote para quê?

Tudo isto, e ainda mais, foi apanhado ao Tobias, no que fizeram muito bem, e oxalá se apanhem as bugigangas e drogas aos demais curandeiros, e se punam estes, como manda a lei.

A minha questão é outra, e tem duas faces.

A primeira face é toda de veneração; punamos o curandeiro, mas não esqueçamos que a curandeira foi a célula da medicina. Os primeiros doentes que houve no mundo, ou morreram ou ficaram bons. Interveio depois o curandeiro, com algumas observações rudimentárias, aplicou ervas, que é o que havia à mão, e ajudou a sarar ou a morrer o doente. Daí vieram andando, até que apareceu o médico. Darwin explica por modo análogo a presença do homem na terra. Eu tenho um sobrinho, estudante de medicina, a quem digo sempre que o curandeiro é pai de Hipócrates, e, sendo o meu sobrinho filho de Hipócrates, o curandeiro é avô do meu sobrinho; c descubro agora que vem a ser meu tio,__ fato que eu neguei a princípio. Também não borro o que lá está. Vamos à segunda face.

A segunda é que o espiritismo não é menos curandeira que a outra, é mais grave, porque se o curandeiro deixa os seus clientes estropiados e dispépticos, o espírita deixa-os simplesmente doidos. O espiritismo é uma fábrica de idiotas e alienados, que não pode subsistir. Não há muitos dias deram notícia as nossas fôlhas de um brasileiro que, fora daqui, em Lisboa, foi recolhido em Rilhafoles, levado pela mão do espiritismo.

Mas não é preciso que dêem entrada solene nos hospícios. O simples fato de engolir aqueles rabos de raia, pés de galinha, raiz de mil-homens c outras drogas vira o juízo, embora a pessoa continue a andar na rua, a cumprimentar os conhecidos, a pagar as contas. e até a não pagá-las, que é meio de parecer ajuizado. Substancialmente é homem perdido. Quando eles me vêm contar uns ditos de Samuel e de Jesus Cristo, sublinhados de filosofia de armarinho, para dar na perfeição sucessiva das almas, segundo estas mesmas relatam a quem as quer ouvir, palavra que me dá vontade de chamar a polícia e um carro.

Os espíritas que me lerem hão de rir-se de mim porque é balda certa de todo maníaco lastimar a ignorância dos outros. Eu, legislador, mandava fechar todas as igrejas dessa religião, pegava dos religionários e fazia-os purgar espiritualmente de todas as suas doutrinas; depois, dava-lhes uma aposentadoria razoável.

Boas noites.

Um comentário:

Antonio Brito from Brazil disse...

na última crônica, Machado propõe abolir o espiritismo, pelo mal do curanderismo e alienação que produz