sábado, setembro 18, 2004

é possível excluir o olhar no ato de ensinar? - Antonio Brito

A revolução provocada pela internet, recoloca uma questão, elaborada por Sócrates, que está sem resposta há mais de 2000 anos: Será possível o ensino sem a presença de um professor ? Se antes o livro era objeto de desconfiança, hoje são os dados digitais que apontam para novos desafios.

É uma questão que pertece ao rol daquelas que aparecem ao longo do tempo de modo diverso e não encontram uma resposta. Pensadores como Santo Tomás, Gomperz, Borges e mais recentemente em George Steiner ( Lessons of the Masters) retomarm esta questão. Recentemente Luis Fernado Veríssimo lembra, com seu modo engraçado de dizer,que os mestres nada escreveram e o medo do autor em que a escrita pereça nos novos meios digitais. Borges segue o filósofo aelmão Theodor Gomperz (1832-11912) para justificar a ausência dos escritos pitagóricos, em (Gomperz - "Os pensadores gregos" ).

Por que incluir Pitágoras no mesmo rol dos mestres orais - Buda, Cristo e Sócrates.?

A resposta está numa questão proposta por Santo Tomás :



Na 42 ª Questão da 3ª parte de sua Summa Teológica, São Tomás de Aquino, responde à questão: Por que Jesus Cristo não deixou seus ensinamentos escritos. "Utrum Christus debuerit doctrinam suamscripto tradere?" .



A resposta é, à la São Tomás, bastante simples:



"Sendo o Cristo um professor perfeito , à exemplo de outros pagãos como Pitágoras e Sócrates, ele preferiu falar diretamente ao coração dos homens, pois este é o melhor método de ensino"





É irônico observar que São Tomás, um professor e Doutor da Igreja, não limitou-se a ensinar pelo "método mais perfeito". Escreveu a grande Summa Teológica. Diferente de Sócrates, cujo ensinamento é através do diálogo com os discípulos, São Tomás procura convencer o leitor pela forças dos argumentos impressos da lógica teológica.

Os mais sábios então não precisariam escrever? Teríamos atribuído a Pitágoras ou aos pitagóricos sua gometria caso Euclides não tivesse escrito os Elementos? Platão não imortalizou a morte de Sócrates escrevendo o Fedon (uma das páginas mais emocionantes da filosofia e da imortalidade). O que seria do cristianismo sem os Evangelistas ? O que saberíamos a respeito deles hoje.? Tanto quanto sabemos das inúmeras seitas cujo conhecimento baseava-se na tradição oral, ou seja, nada exceto que existiram.



Por que então os mestres pivotais não escreveram?

Existe duas respostas plausíveis. Os Mestres não escreviam por que não podiam (talvez não dominassem a escrita da época) ou por que não queriam? No caso de Pitágoras, ambas as respostas são aceitáveis. Na sua epoca (~500 A.C.) a maior parte da cultura grega era transmitida na forma oral, em um poema métrico para facilitar a memorização. Sòmente em ~350 A.C., a lingua grega escrita passou a ser uma ferramenta para conservar a memória (e aí Borges nos diz que o livro é uma extensão da memória ). Por outro lado o pitagorismo era uma seita, cujos conhecimentos só eram acessíveis aos iniciados e transmitidos oralmente. Os membros da seita eram condenados caso desvelassem os conhecimentos de Pitágoras aos demais. Não podemos imaginar que algo que deva permanecer oculto possa ser escrito, daí mesmo que Pitágoras dominasse a escrita não a desejaria. A escrita, e o banco de dados, é a morte do segredo.

A questão em Sócrates é mais bem definida. Ele acreditava que a filosofia só podia ser ensinada através do diálogo. O aluno teria que chegar ao conhecimento através de um conjunto de perguntas contraditórias até atingir a compreensão, assim nos mostra Platão. São Tomás extrai do Diálogo platônico de Fedro (275a) esta posição socrática, que talvez não fosse a mesma de Platão.

Platão descreve, em Fedro, que um Deus oferece ao rei egípcio os saberes da escrita e este a recusa. Para o rei, e Sócrates, a escrita não ajuda à memória, ao contrário. A escrita é como uma figura, uma esfíngie, símbolos indecifráveis. O autor não mais está está presente para defender a letra imutável. Pode ser que o autor esteja querendo nos enganar, ele não poderá ser contestado.

Para os gregos, inclusive Platão, a escrita egípcia era uma série de imagens indecifráveis.Somente um seleto grupo de sarcedotes eram capazes de escrever e ler os hieróglifos. A interpretação da escrita hieroglifica egípcia só foi resolvida em 1800. Um general de Napoleão, em sua expedição pelo Egito, encontrou na margem esquerda do rio Nilo uma pedra com inscrições. Era uma monumento à posse do rei Ptolomeu V em 196 A.C. , escrito em duas línguas e três escritas: hieróglifos, demótico (linguagem cursiva dos hieróglifos) e grego. A decifração dos hieróglifos foi feita pelo inglês Thomas Young e o francês Jean-François Champollion. Este último foi o primeiro a reconhecer que os símbolos poderiam significar tanto as letras como um ideograma. Este simples achado, escrito em uma pedra à beira do caminho, permitiu à nossa civilização recuperar a memória escrita nos hieróglifos egípcios.

Discordava Platão do uso da escrita no ensino da filosofia ?.É difícil acreditar que um escritor abundante e encantador como Platão não reconhecesse a importância do trabalho escrito, ao menos para as futuras gerações. O que seria dos pitagóricos sem Euclides que consolidou a geometria ao escrever Os Elementos.? O que saberíamos de Sócrates caso não houvesse os Diálogos de Platão? Tanto o quanto sabemos dos sofistas que limiavam-se à palavra oral. Quanto a Cristo, pouco podemos afirmar se ele dominava grego ou o Latim escrito, a duas línguas mais bem estruturadas da época, porém o que seria dos seus ensinamentos sem os evangelistas?

Num dos ensaios Steiner lembra-nos que de todas as obras humanas, só o livro não perece. Flaubert, recordou ele, moribundo, às portas da morte, enfureceu-se com o fato da sua personagem Emma Bovary sobreviver-lhe. Mulher provinciana, adúltera, quase uma "rameira", sem qualidades dignas de mérito, ela permaneceria para sempre, imortalizada por ele, enquanto o autor estava ali agonizando, deixando escapar a vida. E, como ele, bem antes dele, muitos se consolaram, como Píndaro, que suas palavras ficariam gravadas no tempo, que os grandes homens e as cidades da sua época desapareceriam mas que aquilo que eles escreveram ou disseram nunca mais seria apagado dos registros humanos. O paradoxo disso é que aquilo que nos parece sólido no presente, o concreto, a pedra, o aço, se dissolverá algum dia, enquanto aquilo que nos assoma como o mais frágil: a palavra, o papel impresso, o livro enfim, perdurarão pelos tempos afora. O que é imortal é o produto da inteligência e do espírito humano.

quinta-feira, setembro 09, 2004

compagnon - Cap. I - A Literatura

A Literatura – Cap. 1
Os estudos literários falam da literatura das mais diferentes maneiras. Concordam, entretanto, num ponto: diante de todo estudo literário, qualquer que seja seu objetivo, a primeira questão a ser colocada, embora pouco teórica, é a da definição que ele fornece (ou não) de seu objeto: o texto literário. O que toma esse estudo literário? Ou como ele define as qualidades literárias do texto literário? Numa palavra, o que é para ele, explícita ou implicitamente, a literatura?
Certamente, essa primeira questão não é independente das que se seguirão. Indagaremos sobre seis outros termos ou noções, ou, mais exatamente, sobre a relação do texto literário com seis outras noções: a intenção, a realidade, a recepção, a língua, a história e o valor. Essas seis questões poderiam, portanto, ser reformuladas, acrescentando-se a cada uma o epíteto literário, o que, infelizmente, as complica mais do que as simplifica:
O que é intenção literária?
O que é realidade literária?
O que é recepção literária?
O que é língua literária?
O que é história literária?
O que é valor literário?
Ora, emprega-se, freqüentemente, o adjetivo literário, assim
como o substantivo literatura, como se ele não levantasse problemas, como se acreditasse haver um consenso sobre o que é literário e o que não o é. Aristóteles, entretanto, já observava, no início de sua Poética, a inexistência de um termo genérico para designar ao mesmo tempo os diálogos socráticos, os textos em prosa e o verso: "A arte que usa apenas a linguagem em prosa ou versos L..] ainda não recebeu um nome
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até o presente" (14447a 28-b9). Há o nome e a coisa. O nome literatura é, certamente, novo (data do início do século XIX; anteriormente, a literatura, conforme a etimologia, eram as inscrições, a escritura, a erudição, ou o conhecimento das letras; ainda se diz "é literatura"), mas isso não resolveu o enigma, como prova a existência de numerosos textos intitulados Qu'Est-ce que l'Art? [O que É a Arte?] (Tolstol, 1898), "Qu'Est-ce que Ia Poésie?" [O que É a Poesia?] (Jakobson, 19331934), Qu'Est-ce que Ia Littérature? [O que É Literatura?] Charles Du Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947). A tal ponto que Barthes renunciou a uma definição, contentando-se com esta brincadeira: "A literatura é aquilo que se ensina, e ponto finaL"! Foi uma bela tautologia. Mas pode-se dizer outra coisa que não "Literatura é literatura?", ou seja, "Literatura é o que se chama aqui e agora de literatura?" O filósofo Nelson Goodman (977) propôs substituir a pergunta "O que é arte?" (What is art?) pela pergunta "Quando é arte?" (When is art?) Não seria necessário fazer o mesmo com a literatura? Afinal de contas, existem muitas línguas nas quais o termo literatura é intraduzível, ou não existe uma palavra que lhe seja equivalente.
Qual é esse campo? Essa categoria, esse objeto? Qual é a sua "diferença específica?" Qual é a sua natureza? Qual é a sua função? Qual é sua extensão? Qual é sua compreensão? É necessário definir literatura para definir o estudo literário, mas qualquer definição de literatura não se torna o enunciado de uma norma extraliterária? Nas livrarias britânicas encontra-se, de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Ficção;
de um lado, livros para a escola e, de outro, livros para o lazer, como se a Literatura fosse a ficção entediante, e a Ficção, a literatura divertida. Seria possível ultrapassar essa classificação comercial e prática?
A aporia resulta, sem dúvida, da contradição entre dois pontos de vista possíveis e igualmente legítimos; ponto de vista contextual (histórico, psicológico, sociológico, instituciona!) e ponto de vista textual (lingüístico). A literatura, ou o estudo literário, está sempre imprensada entre duas abordagens irredutíveis: uma abordagem histórica, no sentido amplo (o texto como documento), e uma abordagem lingüística (o texto como fato da língua, a literatura como arte da linguagem). Nos anos sessenta, uma nova querela entre antigos
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e modernos despertou a velha guerra de trincheiras entre partidários de uma definição externa e partidários de uma definição interna de literatura, aceitáveis as duas, mas ambas limitadas. Genette, que julga "tola" a pergunta "O que é literatura?" - ela é mal colocada -, sugeriu, entretanto, distinguir dois regimes literários complementares: um regime constitutivo, garantido pelas convenções, logo fechado - um soneto, um romance pertencem de direito à literatura, mesmo que ninguém os leia -, e um regime condicional, logo aberto, dependente de uma apreciação revogável - a inclusão, na literatura, dos Pensées [Pensamentos] de Pascal ou de Ia Sorciere [A Feiticeira] de Michelet depende dos indivíduos e das épocas.2
Descrevamos a literatura sucessivamente: do ponto de vista da extensão e da compreensão, depois da função e da forma, em seguida, da forma do conteúdo e da forma da expressão. Avancemos dissociando, seguindo o método familiar da dicotomia platônica, mas sem demasiadas ilusões sobre nossas chances de sucesso. Como a questão "O que é literatura?" é insolúvel dessa maneira, o primeiro capítulo será o mais curto deste livro, mas todos os capítulos seguintes continuarão a busca de uma definição satisfatória de literatura.

A EXTENSÃO DA LITERATURA
No sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral, doravante consignada). Essa acepção corresponde à noção clássica de "belas-letras" as quais compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a ficção, mas também a história, a filosofia e a ciência, e, ainda, toda a eloqüência. Contudo, assim entendida, como equivalente à cultura, no sentido que essa palavra adquiriu desde o século XIX, a literatura perde sua "especificidade": sua qualidade propriamente literária lhe é negada. Entretanto, a filologia do século XIX ambicionava ser, na realidade, o estudo de toda uma cultura, da qual a literatura, na acepção mais restrita, era o testemunho mais acessível. No conjunto orgânico assim constituído, segundo a filologia, pela língua, pela literatura e pela cultura,
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unidade identificada a uma nação, ou a uma raça, no sentido filológico, não biológico do termo, a literatura reinava absoluta, e o estudo da literatura era a via régia para a compreensão de uma nação, estudo que os gênios não só perceberam, mas no qual também forjaram o espírito.
No sentido restrito, a literatura (fronteira entre o literário e o não literário) varia consideravelmente segundo as épocas e as culturas. Separada ou extraída das belas-letras, a literatura ocidental, na acepção moderna, aparece no século XIX, com o declínio do tradicional sistema de gêneros poéticos, perpetuado desde Aristóteles. Para ele, a arte poética – a arte dessa coisa sem nome, descrita na Poética - compreendia, essencialmente, o gênero épico e o gênero dramático, com exclusão do gênero lírico, que não era fictício nem imitativo uma vez que, nele, o poeta se expressava na primeira pessoa - vindo a ser, conseqüentemente, e por muito tempo, julgado um gênero menor. A epopéia e o drama constituíam ainda os dois grandes gêneros da idade clássica, isto é, a narração e a representação, ou as duas formas maiores da poesia, entendida como ficção ou imitação (Genette, 1979; Combe). Até então, a literatura, no sentido restrito (a arte poética), era o verso. Mas um deslocamento capital ocorreu ao longo do século XIX: os dois grandes gêneros, a narração e o drama, abandonavam cada vez mais o verso para adotar a prosa. Com o nome de poesia, muito em breve não se conheceu senão, ironia da história, o gênero que Aristóteles excluía da poética, ou seja, a poesia lírica a qual, em revanche, tornou-se sinônimo de toda poesia. Desde então, por literatura compreendeu-se o romance, o teatro e a poesia, retomando-se à tríade pós-aristotélica dos gêneros épico, dramático e lírico, mas, doravante, os dois primeiros seriam identificados com a prosa, e o terceiro apenas com o verso, antes que o verso livre e o poema em prosa dissolvessem ainda mais o velho sistema de gêneros.
O sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia) é inseparável do romantismo, isto é, da afirmação da relatividade histórica e geográfica do bom gosto, em oposição à doutrina clássica da eternidade e da universalidade do cânone estético. Restrita à prosa romanesca e dramática, e à poesia lírica, a literatura é concebida, além disso, em suas
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relações com a nação e com sua história. A literatura, ou melhor, as literaturas são, antes de tudo, nacionais.
Mais restritamente ainda: literatura são os grandes escritores. Também essa noção é romântica: Thomas Carlyle via neles os heróis do mundo moderno. O cânone clássico eram obras-modelo, destinadas a serem imitadas de maneira fecunda; o panteão moderno é constituído pelos escritores que melhor encarnam o espírito de uma nação. Passa-se, assim, de uma definição de literatura do ponto de vista dos escritores (as obras a imitar) a uma definição de literatura do ponto de vista dos professores (os homens dignos de admiração). Alguns romances, dramas ou poemas pertencem à literatura porque foram escritos por grandes escritores, segundo este corolário irônico: tudo o que foi escrito por grandes escritores pertence à literatura, inclusive a correspondência e as anotações irrisórias pelas quais os professores se interessam. Nova tautologia: a literatura é tudo o que os escritores escrevem.
Voltarei, no último capítulo, ao valor ou à hierarquia literária, ao cânone como patrimônio de uma nação. No momento, notemos apenas este paradoxo: o cânone é composto de um conjunto de obras valorizadas ao mesmo tempo em razão da unicidade da sua forma e da universalidade (pelo menos em escala nacional) do seu conteúdo; a grande obra é reputada simultaneamente única e universal. O critério (romântico) da relatividade histórica é imediatamente contraposto à vontade de unidade nacional. Donde a zombaria irônica de Barthes: "A literatura é aquilo que se ensina", variação da falsa etimologia consagrada pelo uso: "Os clássicos são aqueles que lemos em classe."
Evidentemente, identificar a literatura com o valor literário (os grandes escritores) é, ao mesmo tempo, negar (de fato e de direito) o valor do resto dos romances, dramas e poemas, e, de modo mais geral, de outros gêneros de verso e de prosa. Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão. Dizer que um texto é literário subentende sempre que um outro não é. O estreitamento institucional da literatura no século XIX ignora que, para aquele que lê, o que ele lê é sempre literatura, seja Proust ou uma fotonovela, e negligencia a complexidade dos níveis de literatura (como há níveis de língua) numa sociedade. A literatura, no sentido restrito,
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seria somente a literatura culta, não a literatura popular (a Fiction das livrarias britânicas).
Por outro lado, o próprio cânone dos grandes escritores não é estável, mas conhece entradas (e saídas): a poesia barroca, Sade, Lautréamont, os romancistas do século XVIII são bons exemplos de redescobertas que modificaram nossa definição de literatura. Segundo T. S. Eliot, que pensava como um estruturalista em seu artigo "La Tradition et le Talent Individuel" [A Tradição e o Talento Individual] (919), um novo escritor altera toda a paisagem da literatura, o conjunto do sistema, suas hierarquias e suas filiações:
“Os monumentos existentes formam entre si uma ordem ideal que é modificada pela introdução, entre eles, da nova (da verdadeiramente nova) obra de arte. A ordem existente é completa antes da chegada da nova obra; para que a ordem subsista, depois da intervenção da novidade, o conjunto da ordem existente deve ser alterado, ainda que ligeiramente; e assim as relações, as proporções, os valores de todas as obras de arte em relação ao conjunto são reajustados”.3
A tradição literária é o sistema sincrônico dos textos literários, sistema sempre em movimento, recompondo-se à medida que surgem novas obras. Cada obra nova provoca um rearranjo da tradição como totalidade (e modifica, ao mesmo tempo, o sentido e o valor de cada obra pertencente à tradição).
Após o estreitamento que sofreu no século XIX, a literatura reconquistou desse modo, no século XX, uma parte dos territórios perdidos: ao lado do romance, do drama e da poesia lírica, o poema em prosa ganhou seu título de nobreza, a autobiografia e o relato de viagem foram reabilitados, e assim por diante. Sob a etiqueta de paraliteratura, os livros para crianças, o romance policial, a história em quadrinhos foram assimilados. Às vésperas do século XXI, a literatura é novamente quase tão liberal quanto as belas-letras antes da profissionalização da sociedade.
O termo literatura tem, pois, uma extensão mais ou menos vasta segundo os autores, dos clássicos escolares à história em quadrinhos, e é difícil justificar sua ampliação contemporânea. O critério de valor que inclui tal texto não é, em si mesmo, literário nem teórico, mas ético, social e ideológico,

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de qualquer forma extraliterário. Pode-se, entretanto, definir literariamente a literatura?


COMPREENSÃO DA LITERATURA: A FUNÇÃO

Continuemos a proceder, imitando Platão, por dicotomia, e distingamos função e forma, através de duas questões: O que a literatura faz? Qual é o seu traço distintivo?
As definições de literatura segundo sua função parecem relativamente estáveis, quer essa função seja compreendida como individual ou social, privada ou pública. Aristóteles falava de katharsis, de purgação, ou de purificação de emoções como o temor e a piedade (1449b 28). É uma noção difícil de determinar, mas ela diz respeito a uma experiência especial das paixões ligada à arte poética. Aristóteles, além disso, colocava o prazer de aprender na origem da arte poética (1448b 13): instruir ou agradar (prodesse aut delectare), ou ainda instruir agradando, serão as duas finalidades, ou a dupla finalidade, que também Horácio reconhecerá na poesia, qualificada de dulce et utile. (Ars Poetica [Arte Poética] v.333 e 343).
Essa é a mais corrente definição humanista de literatura, enquanto conhecimento especial, diferente do conhecimento filosófico ou científico. Mas qual é esse conhecimento literário, esse conhecimento que só a literatura dá ao homem? Segundo Aristóteles, Horácio e toda a tradição clássica, tal conhecimento tem por objeto o que é geral, provável ou verossímil,
a dóxa, as sentenças e máximas que permitem compreender e regular o comportamento humano e a vida social. Segundo a visão romântica, esse conhecimento diz respeito sobretudo ao que é individual e singular. A continuidade permanece, no entanto, profunda: de Paolo e Francesca - que, n'A Divina Comédia, descobrem estar apaixonados lendo juntos os romances da Table Ronde - a Don Quichote - que põe em
prática os romances de cavalaria - e Madame Bovary
intoxicada pelos romances sentimentais que devora. Essas obras, claramente paródicas, são prova da função de aprendizagem atribuída à literatura. Segundo o modelo humanista, há um conhecimento do mundo e dos homens propiciado
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pela experiência literária (talvez não apenas por ela, mas principalmente por ela), um conhecimento que só (ou quase só) a experiência literária nos proporciona. Seríamos capazes de paixão se nunca tivéssemos lido uma história de amor, se nunca nos houvessem contado uma única história de amor? O romance europeu em particular, cuja glória coincidiu com a expansão do capitalismo, propõe, desde Cervantes, uma aprendizagem do indivíduo burguês, Não poderíamos avançar, mesmo que o modelo de indivíduo, que surgiu no fim da Idade Média, fosse o leitor traçando seu caminho no livro, e que o desenvolvimento da leitura fosse o meio de aquisição da subjetividade moderna? O indivíduo é um leitor solitário, um intérprete de signos, um caçador ou um adivinho, poderíamos dizer com Carlo Ginsburg o qual, por dedução lógico-matemática, identificou esse outro modelo de conhecimento com a caça (deciframento dos vestígios do passado) e a adivinhação (deciframento dos signos do futuro).
"Cada homem traz em si a forma completa da condição humana", escreve Montaigne no livro III dos Essais [Ensaios], Sua experiência, tal como a interpretamos, parece exemplar quanto ao que chamamos de conhecimento literário. Depois de ter acreditado na verdade dos livros, em seguida ter duvidado dela a ponto de quase negar a individualidade, ele teria, ao final do seu percurso dialético, voltado a encontrar em si a totalidade do Homem. A subjetividade moderna desenvolveu-se com a ajuda da experiência literária, e o leitor é o modelo de homem livre, Atravessando o outro, ele atinge o universal: na experiência do leitor, "a barreira do eu individual, na qual ele era um homem como os outros, ruiu" (Proust), "eu é um outro" (Rimbaud), ou "sou agora impessoal" (Mallarmé).
Evidentemente, essa concepção humanista de conhecimento literário foi denunciada, por seu idealismo, como visão de mundo de uma classe particular. Ligada à privatização da cena da leitura, depois do nascimento da imprensa, ela estaria comprometida com valores dos quais seria ao mesmo tempo causa e conseqüência, sendo o primeiro deles o indivíduo burguês. Essa é, sobretudo, a crítica marxista, que vincula literatura e ideologia. A literatura serve para produzir um consenso social; ela acompanha, depois substitui a religião como ópio do povo. Os literatos, principalmente Matthew Arnold, na Inglaterra vitoriana, por sua obra fundadora,

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Cu/ture and Anarchy [Cultura e Anarquia] (1869), mas também Ferdinand Brunetiere e Lanson, na França, adotaram esse ponto de vista no final do século XIX, julgando que seu tempo chegara: depois da decadência da religião, e antes da apoteose da ciência, no interregno, à literatura seria atribuída, ainda que provisoriamente, e graças ao estudo literário, a tarefa de fornecer uma moral social. Num mundo cada vez mais materialista ou anarquista, a literatura aparecia como a última fortaleza contra a barbárie, o ponto fixo do final do século: chega-se assim, a partir da perspectiva da função, à definição canônica de literatura.
Mas, se a literatura pode ser vista como contribuição à ideologia dominante, "aparelho ideológico do Estado", ou mesmo propaganda, pode-se, ao contrário, acentuar sua
função subversiva, sobretudo depois da metade do século XIX e da voga da figura do artista maldito. É difícil identificar Baudelaire, Rimbaud ou Lautréamont com os cúmplices da ordem estabeleci da. A literatura confirma um consenso, mas produz também a dissensão, o novo, a ruptura. Segundo o modelo militar da vanguarda, ela precede o movimento, esclarece o povo. Trata-se do par imitação e inovação, dos antigos e dos modernos, ao qual voltaremos. A literatura precederia também outros saberes e práticas: os grandes escritores (os visionários) viram, antes dos demais, particularmente antes dos filósofos, para onde caminhava o mundo: "O mundo vai acabar" - anunciava Baudelaire em Fusées [Lampejos], no início da idade do progresso - e, realmente, o mundo não cessou de acabar. A imagem do visionário foi revalorizada no século XX, num sentido político, atribuindo-se à literatura uma perspicácia política e social que faltaria a todas as outras práticas.
Do ponto de vista da função, chega-se também a uma aporia: a literatura pode estar de acordo com a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o movimento, mas também precedê-lo. A pesquisa da literatura por parte da instituição leva a um relativismo sociohistórico herdeiro do romantismo. Prosseguindo na dicotomia, examinando agora o lado da forma, das constantes, dos universais, procurando uma definição formal, depois de uma definição funcional de literatura, voltamos aos antigos e clássicos, passamos também da teoria da literatura à teoria literária, segundo a distinção que fiz anteriormente.
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COMPREENSÃO DA LITERATURA: A FORMA DO CONTEÚDO

Da Antigüidade à metade do século XVIII, a literatura
sei que a palavra é anacrônica, mas suponhamos que ela designe o objeto da arte poética - foi geralmente definida como imitação ou representação (mimesis) de açôes humanas pela linguagem. É como tal que ela constitui uma fábula ou uma história (muthus). Os dois termos (mimesis e muthos) aparecem desde a primeira página da Poética de Aristóteles e fazem da literatura uma ficção - tradução de mimesis às vezes adotada, por exemplo, por Kate Hamburger e Genette ou, ainda, uma mentira, nem verdadeira nem falsa, mas verossímil: um "mentir-verdadeiro", como dizia Aragon. "O poeta", escrevia Aristóteles, "deve ser poeta de histórias mais que de metros, pois que é em razão da mimesis que ele é poeta, e o que ele representa ou imita (mimeisthai) são açôes" (1451b 27).
Em nome dessa definição de poesia através da ficção, Aristóteles excluía da poética não apenas a poesia didática ou satírica, mas também a poesia lírica, que põe em cena o eu do poeta, e não preservava senão os gêneros épico (narrativo) e trágico (dramático). Genette fala de uma "poética essencialista” ou, ainda, constitutivista "na sua versão temática". Segundo essa poética, "a maneira mais segura para a poesia escapar do risco de dissolução, no emprego corrente da linguagem, e se fazer obra de arte é a ficção narrativa ou dramática".4 O qualificativo temático parece-me que deve ser evitado, pois não há temas (conteúdos) constitutivamente literários: o que Aristóteles e Genette visam é ao estatuto ontológico, ou pragmático, constitutivo dos conteúdos literários, é, pois, a ficção como conceito ou modelo, não como tema (ou como vazio, não como pleno); e Genette, além disso, prefere chamá-Ia ficcionalidade. Referindo-me às distinções
do lingüista Louis Hjelmslev entre substância do conteúdo (as idéias), forma do conteúdo (a organização dos significados), substância da expressão (os sons) e forma da expressão (a organização dos significantes), direi que, para a poética clássica, a literatura é caracterizada pela ficção enquanto forma do conteúdo, isto é, enquanto conceito ou modelo.
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Mas trata-se de uma definição ou de uma propriedade da literatura? No século XIX, à medida que a poesia lírica ocupava o centro da poesia, representando-a, finalmente, na sua totalidade, essa definição devia desaparecer. A ficção como conceito vazio não era mais uma condição necessária e suficiente da literatura (veremos tudo isso detalhada mente no Capítulo III, sobre a mimesis), embora, sem dúvida alguma, seja sempre como ficção que a opinião corrente considera globalmente a literatura.


COMPREENSÃO DA LITERATURA: A FORMA DA EXPRESSÃO

A partir da metade do século XVIII, uma outra definição de literatura se opôs cada vez mais à ficção, acentuando o belo, concebido doravante - por exemplo, na Crítica da
Faculdade do juízo (1790), de Kant, e na tradição romântica
como tendo um fim em si mesma. A partir de então, a arte e a literatura não remetem senão a si mesmas. Em oposição à linguagem cotidiana, que é utilitária e instrumental, afirma-se que a literatura encontra seu fim em si mesma. Segundo o
Tesouro da Língua Francesa, herdeiro dessa concepção, a literatura é simplesmente "o uso estético da linguagem escrita".
A vertente romântica dessa idéia foi, durante muito tempo, a mais valorizada, separando a literatura da vida, considerando a literatura uma redenção da vida ou, desde o final do século XIX, a única experiência autêntica do absoluto e do nada. Essa tradição pós-romântica e essa concepção de literatura como redenção manifestam-se ainda em Proust, que afirma, em O Tempo Redescoberto, que "a verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, logo a única vida plenamente vivida, é a literatura",5 ou em Sartre, antes da guerra, no final de Ia Nausée [A Náusea], quando uma música de jazz salva Roquetin da contingência. A forma, a metáfora, "os elos necessários do belo estilo" em Proust,6 permite escapar deste mundo, apreender "um pouco do tempo em estado puro".7
Mas tal idéia tem também um lado formalista, mais familiar hoje, que separa a linguagem literária da linguagem cotidiana, ou singulariza o uso literário em relação à linguagem comum.
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Qualquer signo, qualquer linguagem é fatalmente transparência e obstáculo. O uso cotidiano da linguagem procura fazer-se esquecer tão logo se faz compreender (é transitivo, imperceptível), enquanto a linguagem literária cultiva sua própria opacidade (é intransitiva, perceptível). Numerosas são as maneiras de apreender essa polaridade. A linguagem cotidiana é mais denotativa, a linguagem literária é mais conotativa (ambígua, expressiva, perlocutória, auto-referencial): "Significam mais do que dizem", observava Montaigne, referindo-se às palavras poéticas. A linguagem cotidiana é mais espontânea, a linguagem literária é mais sistemática (organizada, coerente, densa, complexa). O uso cotidiano da linguagem é referencial e pragmático, o uso literário da língua é imaginário e estético. A literatura explora, sem fim prático, o material lingüístico. Assim se enuncia a definição forma lista de literatura.
Do romantismo a Mallarmé, a literatura, como resumia Foucault, "encerra-se numa intransitividade radical", ela "se torna pura e simples afirmação de uma linguagem que só tem como lei afirmar [....] sua árdua existência; não faz mais que se curvar, num eterno retorno, sobre si mesma, como se seu discurso não pudesse ter como conteúdo senão sua própria forma".8 Valéry chegava a essa conclusão no seu "Cours de poétique": "a Literatura é, e não pode ser outra coisa senão uma espécie de extensão e de aplicação de certas propriedades da Linguagem".9 Eis, portanto, nessa volta aos antigos contra os modernos, aos clássicos contra os românticos, uma tentativa de definição universal da literatura, ou da poesia, como arte verbal. Genette falaria de "uma poética essencialista na sua versão formal", mas eu diria que se trata, dessa vez, da forma da expressão, porque a definição de literatura através da ficção era também ela formal, mas recaía sobre a forma do conteúdo. De Aristóteles a Valéry, passando por Kant e Mallarmé, a definição de literatura através da ficção cedeu, pois, lugar, pelo menos junto aos especialistas, à sua definição através da poesia (da dicção, segundo Genette). A menos que as duas definições não partilhem o mesmo campo literário.
Os formalistas russos deram ao uso propriamente literário da língua, logo à propriedade distintiva do texto literário, o nome de literariedade. Jakobson escrevia em 1919: "O objeto da ciência literária não é a literatura, mas a literariedade, ou
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seja, o que faz de uma determinada obra uma obra literária";I° ou, muito tempo depois, em 1960: "o que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte",n A teoria da literatura, no sentido de crítica da crítica, e a teoria literária, no sentido de formalismo, parecem se encontrar nesse conceito, que também é tático e polêmico. Os formalistas tentavam, graças a ele, tornar o estudo literário autônomo - sobretudo em relação ao historicismo e ao psicologismo vulgares aplicados à literatura através da definição da especificidade de seu objeto. Eles se opunham abertamente à definição de literatura como documento, ou à sua definição através da função de representação (do real) ou de expressão (do autor) e acentuavam os aspectos da obra literária considerados especificamente literários e distinguiam, assim, a linguagem literária da linguagem não literária ou cotidiana. A linguagem literária é motivada (e não arbitrária), autotélica (e não linear), auto-referencial (e não utilitária).
Qual é, entretanto, essa propriedade - essa essência que torna literários certos textos? Os formalistas, segundo Viktor Chklovski, em "L'Art comme Procédé" [A Arte como
Procedimento] (1917), tomavam como critério de literariedade a desfamiliarização, ou estranhamento (ostranénie): a literatura, ou a arte em geral, renova a sensibilidade lingüística dos leitores através de procedimentos que desarranjam as formas habituais e automáticas da sua percepção. Jakobson explicará, em seguida, que o efeito de desfamiliarização resulta do domínio de certos procedimentos (Jakobson, 1935) que, tomados do conjunto das invariáveis formais ou traços lingüísticas, caracterizam a literatura como experimentação dos "possíveis da linguagem", segundo expressão de Valéry. Mas certos procedimentos, ou o domínio de procedimentos, tornam-se também eles familiares: o formalismo desemboca (ver Capítulo VI) numa história da literariedade como renovação do estranhamento por meio da redistribuição dos procedimentos literários.
A essência da literatura estaria, assim, fundamentada em invariantes formais passíveis de análise. O formalismo, apoiado pela lingüística e revigorado pelo estruturalismo, libera o estudo literário dos pontos de vista estranhos à condição verbal do texto. Quais são os invariantes que ele explora? Os
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gêneros, os tipos, as figuras. O pressuposto é que uma ciência da literatura em geral é possível, em oposição a uma estilística das diferenças individuais.


LITERARIEDADE OU PRECONCEITO

Em busca da "boa" definição de literatura, procedemos segundo o método platônico, pela dicotomia, deixando sempre de lado a via da esquerda (a extensão, a função, a representação), para seguir a via da direita (a compreensão, a forma, a desfamiliarização). Tendo chegado a esse ponto, finalmente, alcançamos êxito? Encontramos na literariedade uma condição necessária e suficiente da literatura? Podemos nos deter aqui?
Afastemos, antes de tudo, esta primeira objeção: como não existem elementos lingüísticos exclusivamente literários, a literariedade não pode distinguir um uso literário de um uso não literário da linguagem. O mal-entendido vem, em grande parte, do novo nome que Jakobson, bem mais tarde, no seu célebre artigo "Linguistique et Poétique" [Lingüística e poética] (960), deu à literariedade. Ele, então, denominou "poética" uma das seis funções que distinguia no ato de comunicação (funções expressiva, poética, conativa, referencial, metalingüística e fática), como se a literatura (o texto poético) abolisse as cinco outras funções, e deixou fora do jogo os cinco elementos aos quais elas eram geralmente ligadas (o locutor, o destinatário, o referente, o código e o contato), para insistir unicamente na mensagem em si mesma. Tal como em seus artigos mais antigos, "La Nouvelle Poésie Russe" [A Nova Poesia Russa] (919) e "La Dominante" [A dominante] (935), Jakobson esclarecia, entretanto, que, se a função poética é dominante no texto literário, as outras funções não são, contudo, eliminadas. Mas, desde 1919, Jakobson afirmava ao mesmo tempo que, em poesia, "a função comunicativa L.,] é reduzida ao mínimo", e que "a poesia é a linguagem na sua função estética", como se as outras funções pudessem ser esquecidas.12 A literariedade (a desfamiliarização) não resulta da utilização de elementos lingüísticos próprios, mas de uma organização diferente (por exemplo, mais densa, mais coerente,
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mais complexa) dos mesmos materiais lingüísticos cotidianos. Em outras palavras, não é a metáfora em si que faria a literariedade de um texto, mas uma rede metafórica mais cerrada, a qual relegaria a segundo plano as outras funções lingüísticas. As formas literárias não são diferentes das formas lingüísticas, mas sua organização as torna (pelo menos algumas delas) mais visíveis. Enfim, a literariedade não é questão de presença ou de ausência, de tudo ou nada, mas de mais e de menos (mais tropos, por exemplo): é a dosagem que produz o interesse do leitor.
Infelizmente, mesmo esse critério flexível e moderado de literariedade é refutável. Mostrar contra-exemplos é fácil. Por um lado, certos textos literários não se afastam da linguagem cotidiana (como a escritura branca, ou behaviorista, a de Hemingway, a de Camus). Sem dúvida, é possível reintegrá-Ios, acrescentando que a ausência de marca é, ela mesma, uma marca, que o cúmulo da desfamiliarização é a familiaridade absoluta (ou o cúmulo da obscuridade, a insignificância), mas a definição de literariedade no sentido restrito, como traços específicos ou flexíveis, como organização específica, não é menos contraditória. Por outro lado, não somente os traços considerados mais literários se encontram também na linguagem não literária, mas ainda, às vezes, são nela mais visíveis, mais densos que na linguagem literária, como é o caso da publicidade. A publicidade seria então o máximo da literatura, o que não é, entretanto, satisfatório. Seria, pois, toda a literatura o que a literariedade dos formalistas caracterizou, ou somente um certo tipo de literatura; a literatura por excelência, de seu ponto de vista, isto é, a poesia, e ainda não toda poesia, mas somente a poesia moderna, de vanguarda, obscura, difícil, desfamiliarizante? A literariedade definiu o que se chamava outrora licença poética, não a literatura. A menos que Jakobson, quando descreveu a função poética como ênfase na mensagem, tenha pensado não somente na forma da mensagem, como de um modo geral compreendemos, mas também no seu conteúdo. O texto de Jakobson sobre "A Dominante" deixava bastante claro, entretanto, que a idéia da desfamiliarização era séria, que suas implicações eram também éticas e políticas. Sem isso, a literariedade parece gratuita, decorativa, lúdica.
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A literariedade, como toda definição de literatura, compromete-se, na realidade, com uma preferência extraliterária. Uma avaliação (um valor, uma norma) está inevitavelmente incluída em toda definição de literatura e, conseqüentemente, em todo estudo literário. Os formalistas russos preferiam, evidentemente, os textos aos quais melhor se adequava sua noção de literariedade, pois essa noção resultava de um raciocínio indutivo: eles estavam ligados à vanguarda da poesia futurista. Uma definição de literatura é sempre uma preferência (um preconceito) erigido em universal (por exemplo, a desfamiliarização). Mais tarde, o estruturalismo em geral, a poética e a narratologia, inspirados no formalismo, deviam valorizar do mesmo modo o desvio e a autoconsciência literária, em oposição à convenção e ao rea
lismo. A distinção proposta por Barthes, em S/Z, entre o legível (realista) e o escriptível (desfamiliarizante), é também abertamente valorativa, mas toda teoria repousa num sistema de preferências, consciente ou não.
Mesmo Genette devia finalmente reconhecer que a literariedade, segundo a acepção de Jakobson, não recobria senão uma parte da literatura, seu regime constitutivo, não seu regime condicional, e, além disso, do lado da literatura dita constitutiva, somente a dicção (a poesia), não a ficção (narrativa ou dramática). Daí inferia, renunciando às pretensões do formalismo e do estruturalismo, que "a literariedade, sendo um fato plural, exige uma teoria pluralista" .13 À literatura constitutiva - ela própria heterogênea e justaposta à poesia (em nome de um critério relativo à forma da expressão) à ficção (em nome de um critério relativo à forma do conteúdo) -, acrescenta-se ainda, desde o século XIX, o domínio vasto e impreciso da prosa não ficcional, condicionalmente literária (autobiografia, memórias, ensaios, história, até o Código Civil), anexada ou não à literatura, ao sabor dos gostos individuais e das modas coletivas. "O mais prudente", concluía Genette, "é, pois, aparente e provisoriamente, atribuir a cada um sua parte de verdade, isto é, uma porção do campo literário" .14 Ora, esse provisório tem tudo para durar, porque não há essência da literatura, ela é uma realidade complexa, heterogênea, mutável.
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LITERATURA É LITERATURA

Ao procurar um critério de literariedade, caímos numa aporia a que a filosofia da linguagem nos habituou. A definição de um termo como literatura não oferecerá mais que o conjunto das circunstâncias em que os usuários de uma língua aceitam empregar esse termo. É possível ultrapassar essa formulação de aparência circular? Um pouco, porque os textos literários são justamente aqueles que uma sociedade utiliza, sem remetê-los necessariamente a seu contexto de origem. Presume-se que sua significação (sua aplicação, sua pertinência) não se reduz ao contexto de sua enunciação inicial. É uma sociedade que, pelo uso que faz dos textos, decide se certos textos são literários fora de seus contextos originais.
Uma conseqüência dessa definição mínima é, no entanto, incômoda. Na verdade, se nos contentarmos com essa caracterização da literatura, o estudo literário não poderia ser qualquer discurso sobre esses textos, mas deverá ser aquele cuja finalidade é atestar, ou contestar, sua inclusão na literatura. E se a literatura e o estudo literário se definem solidariamente pela deliberação de que, para certos textos, o contexto de origem não tem a mesma pertinência que para outros,
resulta daí que toda análise que tem por objeto reconstruir as circunstâncias originais da composição de um texto literário, a situação histórica em que o autor escreveu esse texto e a recepção do primeiro público pode ser interessante, mas não pertence ao estudo literário. O contexto de origem restitui o texto à não-literatura, revertendo o processo que fez dele um texto literário (relativamente independente de seu contexto de origem).
Tudo o que se pode dizer de um texto literário não pertence, pois, ao estudo literário. O contexto pertinente para o estudo literário de um texto literário não é o contexto de origem desse texto, mas a sociedade que faz dele um uso literário, separando-o de seu contexto de origem. Assim, a crítica biográfica ou sociológica, ou a que explica a obra pela tradição literária (Sainte-Beuve, Taine, Brunetiere), todas elas variantes da crítica histórica, podem ser consideradas exteriores à literatura.
Mas se a contextualização histórica não é pertinente, o estudo lingüístico ou estilístico o seria mais? A noção de estilo
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pertence à linguagem corrente e é preciso primeiro refiná-la (ver Capítulo V). Ora, a busca de uma definição de estilo, tanto quanto de literatura, é inevitavelmente polêmica. Ela repousa sempre sobre um invariante da oposição popular entre a norma e o desvio, ou da forma e do conteúdo, ou seja, ainda dicotomias que visam a destruir (desacreditar, eliminar) mais o adversário do que os conceitos. As variações estilísticas não são descritíveis senão como diferenças de significação: sua pertinência é lingüística, não propriamente literária. Nenhuma diferença de natureza entre um "slogan" publicitário e um soneto de Shakespeare, a não ser a complexidade.
Retenhamos disso tudo o seguinte: a literatura é uma inevitável petição de princípio. Literatura é literatura, aquilo que as autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura. Seus limites, às vezes se alteram, lentamente, moderadamente (ver Capítulo VII sobre o valor), mas é impossível passar de sua extensão à sua compreensão, do cânone à essência. Não digamos, entretanto, que não progredimos, porque o prazer da caça, como lembrava Montaigne, não é a captura, e o modelo de leitor, como vimos, é o caçador.





segunda-feira, setembro 06, 2004

Compagnon - resenha

EXCESSOS DA TEORIA LITERÁRIA
Resenha do livro : Antoine COMPAGNON. Le démon de la théorie. Littérature etsens commun. Éditions du Seuil (La couleur des idées), 1998.Autor : Thomas LEPELTIER
(13 de setembro de 1998)Fonte : http://assoc.wanadoo.fr/revue.de.livres/cr/compagnon.htmlAcessado: 05 de setembro de 2004.
(Tradução para fins didáticos de Adail Sobral – 05 de setembro de 2004)

Como se deve abordar um texto literário? Deve-se por exemplo procurar informações sobre o autor ou o contexto histórico e cultural em que o texto foi escrito? O que é mais importante, o estilo ou o conteúdo? Haverá uma leitura objetiva, ou tudo depende da subjetividade do leitor? Para essas perguntas, entre outras, a teoria literária reivindicou oferecer respostas inovadoras. Essa disciplina, que alcançou seu auge na França nos anos 1960,principalmente com Roland BARTHES (1915-1980), estava na vanguarda dos estudos literários no mundo e sua ambição era fundar uma ciência da literatura. Animada por um real espírito combativo, a teoria literária pretendia revolucionar os estudos acadêmicos e devolver a literatura ao centro das preocupações sociais. Ela denunciou continuamente um determinadonúmero de idéias geralmente aceitas: já não era possível, por exemplo, acreditar que a intenção do autor determinava a significação de um texto, que a literatura fala do mundo ou que sua essência é o estilo... Eranecessário acabar com esses “fatos falsos” aceitos com demasiada facilidadepelo sentido comum.Mais de vinte anos depois, tem-se de admitir que a teoria literária não conseguiu atingir seu alvo. Parece que o senso comum, tão depreciado, resistiu a todos os ataques: as intenções do autor despertam ainda nosso interesse; sentimos ainda que a literatura remete ao mundo e ainda somos sensíveis a seu estilo... É conseqüentemente hora de avaliar a situação. Ao tomar como foco, neste livro, sete noções que estão no âmago dessas controvérsias literárias — a literariedade, o autor, o mundo, o leitor, oestilo, a história e o valor — e tentando traçar sua genealogia, AntoineCOMPAGNON oferece essa avaliação. Mostra assim que o fracasso da teoria literária vem de seu hábito de levar a extremos absurdos críticas que poderiam, se assim não fosse, se justificar. Logo, melhor que se deixar apanhar em oposições radicais, Antoine Compagnon opta por uma posição intermediária entre a teoria literária e a (antiga) aproximação acadêmica.Três exemplos — o autor, o mundo e o estilo — em que a oposição entre as duas abordagens é bem definida, vai nos permitir compreender os meandros dessa controvérsia.
O autor
Para compreender o significado de um texto, o senso comum nos leva adeterminar a intenção do autor (o que o autor queria dizer). Assim,voltamo-nos para aspectos de sua biografia para identificar vestígios dessa intenção. A teoria literária nega a relevância de tal investigação na descrição do sentido de um texto. Na verdade, as intenções da pessoa que compôs um texto nunca esclarecem inteiramente sua significação. Mais do que isso, a significação escapa a ela quando o texto, apartado de sua época de seu ambiente cultural, adquire sentidos que o autor não tinha previsto. O texto literário deve conseqüentemente ser visto como autônomo, e não como a expressão da intenção do autor. Antoine Compagnon reconhece a discrepância entre o que o autor queria dizer e o que seu texto significa (nunca se diz exatamente que se quer dizer).Ainda em sua opinião, não é tão fácil de livrar-se da noção de intenção. Por exemplo, quando nos vemos diante dificuldades devido à obscuridade ou à ambigüidade de um texto, é difícil evitar procurar uma passagem paralela do mesmo autor a fim de esclarecer o sentido do texto em questão. Isso supõe que as diferentes passagens têm em comum alguma coerência (o mesmo espírito,o mesmo tom), e que a coerência implica a intenção. Assim, um defensor coerente da teoria literária, convencido da idéia que um texto deve ser estudado sem referência à intenção, deveria evitar comparar passagens diferentes. Mas todos o fazem... E, de fato, presumir que nenhuma intençãoesteja na base composição de um texto significaria considerá-la o resultado de um processo aleatório, como o decorrente da ação de um macaco digitando num teclado de computador . O erro da teoria literária parece ter consistido em confundir o sentido deum texto e sua significação. O sentido é o que permanece estável na recepçãode um texto. A significação indica o que muda. O sentido é original e singular. A significação é o resultado da ligação que estabelecemos entre o sentido e nossa própria experiência (histórica, cultural, individual): é plural, variável e aberto. Assim, quando negou a objetividade do texto ao anunciar que sua significação varia de acordo com a época e o ambiente, ateoria literária esqueceu-se de que o sentido continuava fiel a si mesmo. Se assim não fosse, como seria possível falar da interpretação errônea de um texto? Uma obra pode ser inexaurível, e cada época pode compreendê-la à sua própria maneira, mas isso não significa necessariamente que ela não tem um sentido original. O que é inexaurível é sua significação. Assim a distinção entre o sentido e a significação torna possível esclarecer leituras diferentes de um texto sem eliminar as intenções do autor como um critério da interpretação. Isto não significa que a intenção do autor seja premeditada de modo completamente consciente. A intenção é global: não implica a consciência de todos os detalhes do processo da escrita. Assim como, quando se da uma caminhada, há uma intenção de andar, embora não se premedite conscientementeo movimento de cada músculo, assim também a intenção não pode ser reduzida ao que o autor resolveu escrever. A significação não se encontra no projeto explícito, que não passa de indício. O autor e sua biografia não explicam aobra. Mas o pressuposto de uma intenção permanece ainda assim base de toda interpretação.
O mundo
Em oposição à idéia de que a literatura remete ao mundo (como na mimesis deAristóteles), a teoria literária defendeu a idéia de sua autonomia com relação à realidade. Passou-se a supor que a literatura não mais representava coisa alguma, falava apenas de si mesma; tinha-se tornado auto-referencial: já não havia necessidade de procurar os modelos da Duchesse de Guermantes de Proust. Não mais se lia para descobrir a realidadedas coisas, mas em função das referências que a literatura fazia a si mesma.Essa concepção foi inspirado na teoria de Saussure, segundo a qual a significação dos signos lingüísticos é diferencial (resultado de suasrelações recíprocas) e não referencial (os signos não se referem às coisas). Aplicado à literatura, isso tornou toda referência à realidade, toda semântica, secundária com respeito à sintaxe e à estrutura da narrativa. Conseqüentemente, estudava-se como o que parecia referir-se à realidade estava na verdade determinado por códigos literários, não sendo senão os“effets de réel” que criavam a ilusão de dar acesso à realidade. Por exemplo, de acordo com a teoria literária, um detalhe (frequentemente um objeto) mencionado em uma descrição mas não importante para a história, era um signo convencional e arbitrário que indicava simplesmente ao leitor que a descrição em questão era realista: o detalhe (o objeto descrito) não denotava um objeto real, tendo antes uma conotação de realismo, um “effet deréel”. Como a denúncia da opressão essa parte do espírito de época, a teoria literária chegava a afirmar que essa conotação veiculava uma ideologia burguesa repressiva. Antoine Compagnon concede que um significante não dá acesso direto e transparente a um referente, que um romance não descreve a realidade como ela é. Mas isso não significa, afirma ele, que língua não seja referencial, ou que a literatura nunca descreve o mundo. E, de fato, como pode a teoria literária simultaneamente negar que a língua tem alguma relação referencial com realidade e usa esta mesma língua para determinar suas propriedades reais? Fazê-lo é reconhecer que é possível usar a língua para referir-se a algo que realmente existe, como a própria língua ou a literatura. O paradoxo é conseqüentemente que a função referencial da língua tenha de ser usada para negar sua própria existência!O erro da teoria literária foi ter passado da idéia da arbitrariedade do signo à arbitrariedade da língua. Ela concluiu disso que a língua era um sistema independente da realidade que, com sua estrutura e suas palavras, descrevia essa realidade de maneira arbitrária e constituía assim uma visão do mundo de que seus falantes permaneceriam prisioneiros. Entretanto, não é,por exemplo, porque descrevem as cores do arco-íris diferentemente que diferentes línguas não descrevem o mesmo arco-íris. Seja como for, é usando a língua que se pode observar que aqueles que falam outra língua descrevem a realidade de uma maneira diferente. Para isso, deve ser possível concordar com relação aos objetos que são descritos; a língua tem de falar sobre a realidade. Não se pode, conseqüentemente, concluir que o fato de a literatura falar sobre a literatura faz que ela não fale sobre o mundo.
O estilo
Outro tema de discórdia é a noção de estilo. Tendo eliminado a intenção e a representação, a Teoria Literária anunciou a morte da estilística. A ciênciada linguagem tinha de ir além do estilo, um conceito “pré-teórico”. A idéia do estilo se apoiava na possibilidade de sinonímia, que permitia dizer a mesma coisa de maneiras diferentes, isto é, com diferentes estilos. Tratava-se do conceito de uma dualidade entre o conteúdo e a forma, entre a substância e a expressão ou entre a matéria e a maneira, oposições bináriasque se apoiavam no dualismo entre pensamento e linguagem. A teoria literária julgou obsoletas todas essas polaridades. O pressuposto que estava na baseda estilística apoiava-se num círculo vicioso: para isolar o conteúdo (a substância), era necessário analisar a expressão (a forma), mas para analisar a expressão era necessário já ter determinado o conteúdo. Não erapossível interpretar a matéria sem descrever a maneira, ou descrever amaneira sem interpretar a matéria. Uma descrição estilística deve conseqüentemente ser vista, ao mesmo tempo, como interpretação semântica:analisar o estilo de um poema é determinar seu significado. A teoria literária considerou conseqüentemente que falar de uma maneira diferente era dizer algo diferente, que duas expressões nunca significavam exatamente a mesma coisa. A sinonímia era assim uma ilusão e a estilística deveria ser abandonada. Tem-se não obstante de admitir que o estilo ainda é discutido e que esta noção deve corresponder a algo, dado que é possível limitar um autor por seu estilo. Mas como reconhecer o estilo quando se sustenta que dizer algo de maneira diferente deve diferentemente dizer outracoisa? Para Antoine Compagnon, isso é possível se se admitir que exigir que haja sinonímia é pedir demais. Para o estilo existir, tudo o que é necessário é haver seja maneiras diferentes de dizer coisas bem semelhantes, nas não perfeitamente idênticas. Assim, pode-se dizer mais ou menos a mesma coisa com estilos muito diferentes. Abandonar a sinonímia estrita não abole, conseqüentemente, o estilo. Mais uma vez, Antoine Compagnon opta por uma conciliação entre o estilo como a essência da literatura e o estilo como uma ilusão. Para completar a apresentação desse estimulante livro, seria necessário discorrer sobre os debates sobre o que torna literário um texto, sobre o lugar do leitor, o relacionamento entre a literatura e a história e o valorde textos literários. Apresentando em detalhe as polemicas que cada uma dessas questões inspirou, Antoine Compagnon mostra que uma concepção excessivamente sistemática da literatura não pode escapar à contradição. A pergunta que os estudiosos da literatura não cessam de fazer — e que naturalmente é: o que é literatura — permanece assim não respondida. E por isso esse livro, ao fazer uma clara apresentação dos meandros dos debates literários, é também uma elegante lição da modéstia que a teoria requer...

domingo, setembro 05, 2004

o paraíso - a biblioteca - livros virtuais.

Domingo, 5 de setembro de 2004
O Paraíso e as bibliotecas Em discurso proferido no Congresso Mundial sobre Bibliotecas e Informação, realizado em Buenos Aires, o escritor argentino Tomás Eloy Martínez fala da relação dos homens com o livro e o impacto das novas tecnologias no ato de ler
TOMÁS ELOY MARTÍNEZ La Nación
Em um canto perdido do Museu Britânico, em Londres, há uma minúscula tábua de argila na qual estão gravados alguns versos sobre o dilúvio. Esses versos, que pertencem ao poema babilônico Gilgamesh, foram escritos em caracteres cuneiformes há mais de 4.300 anos. A tábua fazia parte da biblioteca do rei Arsubanipal, e é uma das primeiras de que se têm notícia. Os lampejos de imaginação do desconhecido autor de Gilgamesh iluminavam na época apenas alguns seres humanos: quem sabe 200 ou, talvez, mil. Naquele vasto amanhecer da espécie, a leitura era um conhecimento muito menos comum do que os da agricultura e da guerra. As histórias se perpetuavam por meio da voz dos arautos, que cantavam e improvisavam enquanto os demais ouviam e modificavam o que ouviam com as lembranças da memória. A não ser por alguns relatos sobre reis e guerreiros que buscavam a eternidade, aquelas primitivas tábuas de argila só serviam para o comércio e o registro de poucos feitos importantes: vitórias, conquistas, ritos imperiais.
Quem sabe quantos sistemas independentes de escritura eram então concebidos em outras latitudes. O número dos sobreviventes é cabalístico, sete, e todos eles se originaram a leste da Grécia, em Creta, na Mesopotâmia, nos Vales do Nilo e do Indo, entre os grandes rios da China, na meseta de Anatona, na antiga cidade persa de Susa. A espécie humana demorou mais dois milênios para reunir as palavras e estabelecer com elas essa melodia que agora conhecemos na forma do livro. Os primeiros livros não narravam histórias.
Eram fórmulas de adivinhação, interpretações do vôo dos pássaros, do movimento das ervas, do passeio dos animais. Por meio da natureza, o ser humano tentava decifrar o seu destino. E os livros eram parecidos com a fixação do destino, a eternidade imobilizada em palavras.
Talvez a maior maravilha do livro seja sua capacidade de transfiguração, de ser primeiro a voz que vai se enriquecendo ao passar de geração para geração, até que alguém, com medo que a voz se perca nos ventos do tempo, ordena retê-la em páginas manuscritas, como aconteceu com a Ilíada e As Mil e Uma Noites, para que seja mais tarde, folha impressa, biblioteca de Babel, símbolo virtual que desliza nos computadores. Na forma original do livro está, justamente, a escritura, em cuja definição coincidiram Aristóteles, os sábios chineses do século 15, assim como Voltaire e os enciclopedistas. No seu Lógica, Aristóteles disse que "as palavras faladas são símbolos da experiência mental e as palavras escritas são símbolos das palavras faladas". Segundo Tai T'ung, os chineses definiam a escrita como "a fala pintada" e a fala como "o hálito das vozes". Voltaire disse algo parecido:
"A escritura é a pintura da voz, quanto mais se parece com ela, melhor."
Em seu extenso amanhecer iletrado, a humanidade compunha livros sem saber, vozes, sucessões de histórias que se espalhavam no espaço público: as praças, os templos, as academias. Não existia a idéia de autor como a conhecemos hoje: escrever, ou criar, era uma tarefa coletiva, uma discussão, um diálogo como os que Platão transcreveu. A Ilíada e a Odisséia foram trabalho de muitos homens ou, talvez, de todos os Homeros que trabalharam nessas obras entre os séculos 8 e 6 antes da era atual. Cada copista da Ilíada adicionava uma linha ou subtraía uma cena, até que esse espaço móvel encontrou seu ponto de fixação; e o mesmo aconteceu com os evangelhos canônicos e com os apócrifos, com os textos de Confúcio queimados pelo primeiro imperador da China e refeitos pela memória de seus discípulos, e até com um romance célebre, o caudaloso e medieval Shui-hu-zhuan, ou À Beira d'Água, cujas centenas de episódios poderiam ser mil, cem mil ou apenas um.
A força do livro está no seu poder protéico, em ser voz, volume ou signo virtual, ou tudo de uma vez, para brotar de uma só pessoa ou encarnar, por si só, toda uma cultura.
Na Antiguidade, aqueles que ouviam as palavras de um livro, ou as copiavam, ou as liam conferindo forma oral ao escrito (porque a leitura em silêncio é, como se sabe, uma cerimônia tardia), estabeleciam uma interação entre o livro e sua comunidade. Ler era algo que pertencia à esfera pública e enriquecer o que se ia lendo com adições ou comentários, em vez de ser proibido, merecia gratidão coletiva. Mesmo que os doutores da Igreja tenham traçado depois uma linha divisória entre o conhecimento privado ou sagrado e o conhecimento público ou leigo, muitos poemas, novelas de cavalaria e relatos populares são fruto de gerações que iam depositando neles seus sedimentos culturais e as suas mudanças de linguagem, como aconteceu com Amadis de Gaula, a Chanson de Roland, o Poema de Cid e o épico anglo-saxão de Beowulf. Ao mesmo tempo, algumas grandes criações individuais começaram a impor a idéia de autor. Essa idéia aparece na Comédia de Dante, nos contos de Geoffrey Chaucer e em uma mulher que veio antes de todos, lady Shikibu Murasaki, que entre os anos de 1001 e 1003 recriou e embelezou a língua japonesa com Genji Monogatari, o primeiro e um dos mais esplendorosos romances de que se tem conhecimento.
A invenção da imprensa deu um salto decisivo na relação entre autor e leitor ao colocar o livro em uma esfera privada. Introduziu-o na intimidade do ser humano, converteu-o em acompanhante dos solitários, em confidente de ilusões e segredos, em transmissor de mensagens cifradas e permitiu que cada frase fosse lida de acordo com o ânimo que cada um tinha em um determinado momento da vida. O sentido dessa frase, por sua vez, podia ir se movendo na imaginação do mesmo indivíduo à medida que o tempo passava, tal como o definiu com precisão Jorge Luis Borges em seu conto Pierre Menard, autor de Quijote.
Pouco depois das primeiras Bíblias de Gutenberg, em 1474, Aldus Manutius empreendeu em Veneza a aventura de publicar algumas obras de que necessitava para seus cursos de humanidades. Imprimiu, primeiro, no formato manual, alguns clássicos gregos: Sófocles, Aristóteles, Platão, Tucídides; seguiu em latim com Virgílio, Horácio e Ovídio; e completou a coleção com dicionários e tratados de gramática. Essas edições, as mais esplêndidas da história da imprensa, nasceram com um propósito ainda mais extraordinário. Manutius as editou sem anotações nem comentários, para que os leitores entrassem nos textos de maneira direta, livres de toda mediação e pudessem dialogar a seu modo "com os mortos gloriosos".
O livro como diálogo com os mortos é uma idéia que vai repercutir cinco séculos mais tarde, quando Michel de Certeau define a história como a entrada em cena de uma população de defuntos e quando Jean-Paul Sartre assinala que toda obra só ganha sentido no momento em que é percebida por outro, apropriada por outro. A intimidade do leitor com o livro engendrou milhares de Don Quixotes, milhares de jovens Werthers, todos igualmente desesperados, mas todos com um desespero diferente; legiões de Madame Bovary, de David Copperfield, de Leopold Bloom, de Humbert Humbert e Lolitas. A intimidade criada pela palavra impressa abarca todos os espectros do conhecimento humano: o cinema, a história, a ciência, a filosofia, aquilo que antes é imaginação e depois signo. Cedo ou tarde, todo signo encontra sua mais nobre forma de disseminação na biblioteca, na forma de manuscrito, de fotografia, de gravuras de época, de ensaio para especialistas, de jornal, revista, livro e de informação virtual.
O reino do virtual nos devolveu, de certo modo, à forma comunitária de ler, de nos comunicar e de interagir por meio dos signos. Assim, a espécie humana foi derivando da ágora original, da criação por camadas superpostas de linguagem, a intimidade entre o autor e o texto, e a partir daí se dedicou a uma forma diferente de ágora, na qual o leitor, só diante de seu teclado, entretece sua experiência com os infinitos textos que se cruzam na rede. Os livros ou informações que circulam nesse espaço virtual podem ser encontrados e tomados por quem quiser - e de chofre, assim acontece com freqüência -, modificados por comentários ou reescrituras que vão nascendo enquanto se lê. Pouco a pouco, esta nova forma de ágora, este purgatório ou paraíso do virtual, começou a crescer como uma árvore indomável. A biblioteca de Babel, na qual Borges incluía todos os livros passados e os não escritos, e as variações de cada um desses livros, chegou antes do que se pensava. Já está entre nós.
O filósofo Paul Virilio escreveu que se o elemento central da modernidade era a velocidade da matéria - Fernand Braudel falava da "lentidão dos transportes" na sua história da civilização européia dos séculos 15 a 18 -, o dado central da pós-modernidade é a velocidade da luz. Virilio escreve: "O ser humano se vê superado por uma tecnologia que, no entanto, foi criada pela sua imaginação e pelas suas mãos, capaz de executar ações que vão muito além do que entendemos por passado e futuro." Na rede, na internet, cuja dispersão é global, não há na verdade dia nem noite, nem mesmo horas. Leio hoje o que aconteceu ontem na ilha de Páscoa e o que aconteceu amanhã em Tóquio. O meu tempo é duplo, ou múltiplo. Somos, agora, seres imersos em um oceano de tempo que se move em uma velocidade maior que a nossa imaginação.
Seria loucura pensar, como já previram alguns falsos poetas, que a informação virtual acabará com o livro tal como o conhecemos: ou seja, com o objeto retangular feito de papelão ou cartão ou couro, dentro do qual há folhas de papel cobertas de signos. Talvez o livro se transforme em outros livros, já vimos isso acontecer. Talvez as páginas de uma biblioteca inteira possam se mover com um ligeiro roçar do dedo indicador, como me aconteceu quando contemplei, em um museu da Sexta Avenida de Nova York, as fotos de crianças e adolescentes tiradas pelo diácono de Oxford, que conhecemos pelo nome de Lewis Carroll. Mas o livro vai perdurar na forma que assumiu há mais de 550 anos, porque sempre haverá alguém que prefira, ou melhor, escolha alcançar dessa maneira a intimidade com um autor, por meio das páginas que vão cobrando vida enquanto se abrem. Sempre haverá alguém que vai querer voltar para um livro só na edição em que o conheceu pela primeira vez, às dedicatórias, recordações e passados que ficaram unidos a esse objeto.
A palavra escrita perdurou e prevaleceu sobre os incêndios que tramaram sua destruição, desde que o imperador Shih huang-ti, construtor da Grande Muralha, ordenou que se queimassem todos os livros anteriores a ele, com exceção de alguns tratados de agricultura, só para provar - em vão - que a história do mundo começava com seu reinado. O mesmo fanatismo se ensaiou com a biblioteca que os Ptolomeus haviam criado na Alexandria três séculos antes da era cristã, e que sucumbiu ao fogo durante uma das guerras civis que se sucederam sob o imperador Aureliano, até o ano 273. Milhares de livros foram também jogados na fogueira pelos nazistas, em 1933, e de modo mais sigiloso, ainda que não menos vil, vários milhares foram queimados aqui, na praça de um regimento de Córdoba, no início de 1977.
A intolerância cobrou uma das suas mais lamentáveis vítimas em Bagdá, no dia 14 de abril de 2003, um mês depois da invasão do Iraque e o mesmo dia em que se viu a queda de Saddam Hussein. O saque devorou a cidade com um ímpeto cego e a Biblioteca Nacional também caiu nessa tarde. Pelo menos, 800 mil volumes foram, então, queimados e roubados, como se fossem os culpados das desgraças do Ocidente. A coleção de Omar Khayyam foi totalmente destruída, balas de morteiro explodiram com as caixas de microfilmagem e as caixas de documentos do extinto império otomano. Roubaram ou destruíram também as tábuas cuneiformes dos sumérios e quase todas as escrituras babilônicas do poema Gilgamesh. O diretor da biblioteca conseguiu salvar alguns fragmentos de argila, dos quais tirou estes versos: "O Bosque se estende por dez mil léguas/ Quem se atreveria a entrar nele?/ Porque o rugido de Huwawa é da tempestade/ porque suas presas vomitam fogo e seu hálito é mortal." Essas parcas linhas correspondem à terceira tábua, muito menos afortunada do que a 11.ª, a que fala do dilúvio, no Museu Britânico.
Mas nem o ódio dos bárbaros, nem a intolerância dos injustos conseguiu destruir o livro, cuja memória é também a memória da espécie humana.
Em qualquer uma de suas formas - seja nas tábuas cuneiformes de Gilgamesh, nos livros de orações copiados à mão pelos monges de monastérios medievais ou na primeira Bíblia de Gutenberg, nos folhetins de Dickens, nos três CD-ROMs que compreendem os 30 volumes da Enciclopédia Britânica ou nos arquivos que as pessoas trocam pela internet - o livro nem sempre foi só uma celebração do conhecimento, mas antes de tudo uma celebração da vida. E o que significa celebrar a vida nestes tempos de integração dos mercados, das finanças e da tecnologia? Significa celebrar os valores que definem o melhor do espírito humano: a linguagem, a imaginação, a liberdade, o afã da justiça, a busca da igualdade. Todos, hoje e aqui, continuamos imaginando o Paraíso como uma espécie de biblioteca.